Copenhague Zero Grau - Vida de Cachorro
Podia comer iogurte ou peixe, mas não come. Come é as pílulas pretas que têm proteína, porque carne de boi dá diarreia. Ate melhor: carne de boi dá diarreia e custa um absurdo, por falar nisso.
Bom, mas a diarreia desta semana não é por causa da carne de boi. É uma epidemia, todo mundo tá dizendo. Tem muitos assim. Não adianta cuidado quando dá isso. Nem comida fervida nem água mineral. Nada. Quando é epidemia, não adianta prevenir. Dá mesmo. E pronto.
No inverno, então, ainda é mais complicado vigiar. Come neve, já pensou? Ai, não há remédio, tem o estômago delicado demais. O resultado é que enquanto há neve está doente. Basta uma saída de manhãzinha pra dar a mijada matinal. Uma chatura é a casa suja o tempo todo. Pior que neném novo. Ele é educadinho, sim, mas quem é que pode segurar essas coisas? Você pode? A gente tem paciência lá em casa. Limpo-lhe a bunda quantas vezes for preciso, disso não tenho nojo: da gente é da gente. Agora, com coisa dos outros é que não me envolvo. Tenho nojo mesmo. Ainda esta semana - que azar! - uma amiga de minha filha viajou pra Mallorca e pediu pra gente cuidar da cachorrinha dela. Veio pra casa na semana da epidemia. Se não tivesse apanhado também a tal da diarreia, até que não é das mais chatas, tirando a gulodice. Nunca vi comer tanto assim. Come de tudo, imagine. A dona deixou dinheiro, é verdade. Não é esse o problema. O que me dá medo é ela apanhar uma doença.
A responsabilidade é da gente. Quando sai pra rua, é aquele suplício, sai fuçando tudo, aceita o que lhe derem, se adoece a dona vai pensar que não cuidamos direito. E não é verdade. Ainda tem essa de me amarrar muito, porque minha filha sai cedo e volta tarde em casa. Quem ficou, ontem, quase duas horas no cabeleireiro fui eu, juntando espera na fila e tempo pra lavar, cortar o pelo, pentear e cortar as unhas. E isso vai ser quase duas semanas, até a dona voltar, que ela é muito exigente.
São diferentes os dois. Prefiro o meu, é claro, coruja que sou, mas a cachorrinha dela tem uma vantagem: entende quatro línguas. É o alemão, o polonês, o dinamarquês e o inglês, que é obra das várias cuidadoras que olham a bichinha, enquanto a dona vai pro sul, pegar um pouco de sol em Mallorca todos os anos. Não acho tão difícil, afinal de contas, mas o chato mesmo é que foi vir na semana da epidemia de diarreia e eu sou uma só pra limpar bunda de dois cachorros e um deles nem meu é. Como disse, tenho nojo. Do meu não, veja lá, da outra tenho sim. Deus perdoe: mas pra que fingir, se tenho mesmo?
Do meu, tadinho, tenho pouca queixa. Cachorro educado, paciente, carinhoso, boa índole. Quando sai de manhã, se alvoroça, é claro, mas mija sempre na mesma pedra e não late no corredor. Ele sofre do coração, infelizmente. Pobrezinho. Ficando velho, começou a aparecer um montão de macacoas, acabou que um remédio ia sarando isso, mas complicava aquilo. No fim das contas, quem paga o pato sempre é o coração. Domingo passado, quase morreu. Chamei a ambulância, fizeram massagem e tudo. Graças a Deus, não foi daquela vez.
Não foi daquela, mas será de outra. Não no trânsito, porque nunca atravessa no vermelho. Mas das mazelas. Já está velho, pra mais de doze anos. Coitadinho, tão boa índole! E nos damos tão bem!
(Copenhague, Dinamarca, novembro/1979)