UM MORTO QUE SORRI.
O Chico andava meio macambúzio, pra baixo mesmo, desde que a sua companheira, a mulata Soraia, de um metro e noventa de simpatia e beleza, o trocara por um caixeiro viajante turco, de grosso bigode e de nome Salim. Chico e Soraia moraram um ano juntos. Meses depois, pra piorar, a mãe do Chico se foi, devido a dengue, partindo dessa pra melhor. Aí foi a gota d'água. O pobre entrou de cabeça na cachaça e no conhaque. O preferido dele era o Palhinha pois tinha o mesmo nome de um antigo atacante do Corinthians. O Chico enchia nossos picuá pois vivia repetindo a escalação do Timão de 1977. Era só ficar alegre que danava a falar a escalação de Tobias a Waguinho, não esquecendo de citar que o zagueiro Ademir Gonçalves era da terra dele, Santa Bárbara D'Oeste. Aquele cara cinquentão, obeso, careca e sedentário, em nada lembrava nosso amigo de infância do bairro Campos Elíseos. Era agora um cavaleiro de triste figura. O Chico era uma espécie de líder de nossa patota. Queria ir morar nos EUA. O Chico era muito bom de bola. Era liso igual ao Edu do Santos. A bola colava no pé e ele enfileirava adversários. Um diretor do Palmeiras veio chamá-lo pra jogar nos juniores do palestra mas o Chico era corinthiano roxo. Não foi. Mudava de assunto quando algum amigo o lembrava disso. O Chico era do mundo. Era amante da branquinha. Abandonou os estudos antes de finalizar o ensino médio. Trabalhou décadas de ajudante na oficina do tio dele, o Dejair. Numa tecelagem de Americana o Chico machucou seriamente a coluna. Teve de se aposentar. Passava o dia todo no bar do Gordo, jogando truco, comendo ovo colorido e bebericando seu conhaque. Tinha várias gaiolas de passarinhos. Entrar na casa dele era entrar num túnel do tempo. A geladeira era uma Prosdócimo vermelha, o fogão Dako azul calcinha, uma vitrola e uma tevê de tubo. Sobre a mesa a mesma jarra de plástico imitando abacaxi. O Chico era fiel ao cigarro Arizona. Uma chaminé ambulante. Tinha uma coleção de discos em vinil. Amava Creddence. O Paulo Torpedo, um exímio boêmio pé de valsa, sempre o convidava para o forró da terceira idade. O Chico declinava. -" Sou rocknroll... não curto forró!!" De tanta insistência, o Chico aceitou o convite. -" Vou entrar e ficar uma hora. Não vou dançar. Não insista, Torpedo." Eles chegaram ao clube dos Veteranos, no sábado a noite, a bordo do Opala verde do Paulo Torpedo. Uma extensa fila na bilheteria. -" Abriu o portão do parque dos dinossauros. Só tem velho aqui!!!" Resmungou. -" Você vai gostar, tem uma galera legal." O Chico fez cara de quem comeu e não gostou. -" Já estou amando, Torpedo!!! Amando!!!" Eles entraram. O salão ficou pequeno pra tanta gente. Um som alto. Um falatório igual mercado de peixe. Gente gesticulando e falando alto. Paulo apresentou uns amigos ao Chico. Paulo ia direto para a pista de dança, deixando o Chico sozinho na mesa. Chico e sua cerveja. Chico olhava direto para o relógio. -" Bem melhor ficar vendo filme do Bruce Lee, em casa!" Paulo veio até a mesa com duas amigas. -" Chico, essas são as irmãs Shirley e Cilene. Meninas, esse é o amigo que lhes falei." O Chico se levantou para cumprimentar as moças. Os olhos dele brilharam ao ver Cilene. Era uma cópia de Marlene Dietrich, antiga diva do cinema. As moças se sentaram. Cilene sorriu para ele. Paulo puxou a outra irmã para a pista de dança. -" Gosta de forró, Francisco???" Há tempos ninguém o chamava de Francisco!!! -" Eu amo forró!!!" Mentiroso. Ele se levantou e a convidou pra dançar. Ela dançava bem. Cheirava a jasmim. O Chico calculou que a moça teria uns trinta e dois anos, no máximo. Paulo Torpedo dava risada ao ver o Chico na pista. O malandro pediu o telefone da moça. Estava apaixonado e fez várias perguntas sobre ela, após Paulo as deixarem em casa. -" Cilene é divorciada. Tem um filho pequeno!!! É gente boa!!!" O Chico ligou para a moça no dia seguinte. Marcaram um encontro no Cine Cacique. Em cartaz Titanic, com Leonardo DiCaprio. Cilene aceitou. O Chico estava nas nuvens. Foi visto fazendo caminhada nas ruas do bairro com bermudas e camisa social. Cortou o cabelo e a barba. Queria emagrecer. Queria parar de fumar. Queria parar de beber. Queria impressionar Cilene. O primeiro beijo deles aconteceu na praça da matriz, após assistirem a missa. Desde o batizado o Chico não pisava na igreja. Chico estava apaixonado. A abstinência mexeu com ele. A visão dele embaçou. O médico do posto do bairro receitou-lhe remédios para a pressão arterial. Exames acusaram diabetes. Mais remédios. Chico marcou um jantar romântico. Era aniversário dele. O malandro mentiu que sabia cozinhar mas comprou comida pronta no hipermercado. Tomou os remédios para pressão e diabetes. Tudo em nome do amor. Encheu a casa com rosas vermelhas. Encheu a geladeira com cerveja. Comprou camisinhas caso o romantismo chegasse a níveis calientes. Resolveu comprar dois comprimidos de Viagra. -" Dizem que o azulzinho turbina o equipamento!! Vamos ver!!!" Cilene chegou pontualmente às dezessete horas. Estava num vestido vermelho. Estava mais cheirosa que filho de barbeiro. Estava com um bolo chocolate pra ele. Chico ficou encantado. O jantar foi um sucesso. Cilene cantou parabéns a ele. Um abraço e um beijo apaixonado. -" Seu presente sou eu." Disse ela. Chico corou. Eles assistiram um filme de Julia Roberts, entre salames e cerveja. A moça foi ao banheiro. Chico foi a cozinha e tomou os dois comprimidos azuis. Ele sentiu o rosto queimar e o braço esquerdo formigar. Lavou o rosto com água gelada. Cilene jogou-se sobre ele e o amor aconteceu no sofá da sala. Chico foi ao banheiro. Precisava de um banho. Ela invadiu o banheiro e o amor se deu no chuveiro. Amor com cheiro de shampoo, como na música de Christian e Ralf. Meia noite. Cilene dormiu no sofá e Chico levou-a para o quarto, nos braços. Ele foi a cozinha e tomou uma cerveja gelada. -" Que mulher fantástica, velho Chico!!!!" Ele a viu esparramada na sua cama. -" Mal a conhecemos e já tomam a cama toda pra elas!!!" Ele adormeceu. Cilene acordou com os raios de sol que passavam pelas frestas da velha janela de madeira. Meio dia. Chamou o Chico e nada. -" Amor. Acorda. Quero mais você!!!!" Ela o abraçou. Chico estava duro. Gelado. Morto. Cilene chamou os vizinhos. O coração dele não suportou. No velório o bairro todo. Todos os amigos de copo. Chico era conhecido e querido por muitos. Era a primeira e última vez que colocava um terno de linho. No canto da boca do Chico um indisfarçável sorriso. Morreu feliz, ao menos!!! FIM.