Alice. Desde o nascimento, estava marcada: parto complicado, icterícia e pulmão fraco:- É uma menina, a senhora  quer pegar um pouquinho?
- Não. Tô com fome. Enfermeira, eu quero comida. Entendeu?
- O bebê precisa ser amamentado. Ela é tão fraquinha, precisa de cuidados...
- Cê acha, mesmo? Dá mamadeira pra ela. Quer prá você?
- A senhora não trouxe nada pra criança vestir?
- Vocês não doam enxoval pros pobres? Pelo menos, doavam...
A menina  cresceu, lenta e desajeitada.  Nunca  chorava e falava muito pouco. Passava os dias quieta, olhando as paredes descascadas. Dessa forma, apanhava menos que os irmãos. Eram surras diárias e sem motivo. 

Foi crescendo feito bicho. Sem escola, faminta, disputando as migalhas e restos. Com treze anos,  aparentava oito. A mãe não sabia quem era o pai das crianças. Quando o filho mais velho sumiu, deu graças aos céus e amaldiçoou os quatro restantes.
A mulher passava o dia inteiro na birosca.  Filava uma cachacinha e oferecia o corpo gasto. Quando voltava para casa, enxotava os filhos: - Tô cansada de sustentar tantas bocas. Vão  tentar a sorte no asfalto. Vão embora...

Um dia,  Alice desceu a favela. Caminhou pelas ruas sem rumo. As pessoas desviavam, olhando  sérias e desconfiadas. Ela não entendia.  Andou a manhã inteira até chegar ao centro da cidade. 
 Passou por uma grande loja de brinquedos. Parou diante da vitrine, admirando as bonecas, os castelos e as fadas. Tudo era lindo e diferente. Desejou poder  tocar  alguma coisa, uma pequenina, apenas uma daquelas maravilhas, bastaria...
Então, viu seu reflexo. Nunca tinha parado para olhar para si. A aparência desgrenhada, roupas puídas e encardidas. Sentiu vergonha e encolheu os ombros. Procurou andar pelos cantos das calçadas.  Abaixou a cabeça, lembrando a mãe chamando-a de lesada e ‘’fraca das idéias’’.

Grossos pingos começaram a cair, anunciando a chuva forte. Discretamente, catou restos de comida no lixo em frente à lanchonete. O atendente ofereceu os salgados murchos do fim do dia: - Pegue e saia daqui, o patrão não gosta que fique na frente da loja.  
Comeu um pastel  e guardou o resto na sacola plástica. O temporal formou  rios de lama e sujeira. Os bueiros entupidos transbordavam  detritos e  esgoto . As pessoas comentavam que era uma enchente. Alice não entendia nada. 

Foi quando viu o bando de crianças.  Vinham correndo pelo meio da rua, gritando  palavrões e ameaçando o povo. Quase trinta delas, aparentando, no máximo dez  anos. Seguiam um garoto mais forte que parecia o líder.
 Alice reconheceu o irmão desaparecido. Daniel, que a mãe colocava no sinal vendendo balas e chicletes.  Alice gritou  bem alto o nome do irmão : - Alice,  vem com a gente, não posso parar!
-  Pra onde  vai?
- Por aí, está tudo inundado. Anda logo, vem...
- Não. Tenho medo.
- Vem Lice, eu te ajudo.
- Não.
- Eu volto pra te buscar. Vá pra igreja. Lá é bem alto.
Em poucos minutos, a confusão estava formada. Trabalhadores recém saídos dos escritórios tentavam entrar nos estabelecimentos abertos. A multidão,  desesperada, buscava abrigo ou tentava voltar aos edifícios comerciais. Quem estava do lado de dentro, não saía nem deixava abrir as portas.

O bando desapareceu pelas vielas.  A água não parava de subir e o povo acuado. Duas horas mais tarde, já não havia para onde correr. Todos disputavam o espaço nos degraus mais altos da catedral. A escadaria estava tomada por gente de todo tipo.
Alguém empurrou Alice para fora do patamar. A menina  caiu na água imunda, batendo na altura do peito.  Em segundos,  a correnteza forte, tragou o corpinho, arrastando-o  para longe... Alguns gritavam, apontando  a pequena que não  se debatia. Ninguém saiu do lugar, assistiram  Alice sumir lentamente...

Enquanto deslizava nas águas turvas, Alice recordou a vitrine onde se viu pela primeira vez. Pensou nas coisas bonitas e viu a si mesma no meio de todas aquelas riquezas. Rodeada de bonecas, o mundo além do reflexo...Alice por trás do espelho. Nem sentiu quando a morte apagou seus sonhos.



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Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 27/12/2018
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