Meu encontro com Mário

“ O que há de mais triste em virar estátua é que a gente não pode coçar-se…”

(Troquei a data do vôo, por essa razão precisei passar um dia inteiro em Porto Alegre. Daí aproveitei para encontrar um querido amigo. Assim surgiu esse conto).

A primeira vez que avistei o Mário ele estava sentado num banco de pedra, na majestosa praça da Alfândega, conversando animadamente com Carlos (Drumond). Quedei-me muda ao percebê-los. Lindos! Bem vestidos, com todo o charme que só os eternos podem adquirir e conservar. Conversavam animados. Carlos em pé, com um livro nas mãos. Mário, sentado, atento ao tema apresentado. Eu, pobre criatura, tonta, bêbada, apaixonada por estar ali, onde tantas vezes ele esteve, tantas conversas aconteceram, tantos amigos ele fez, tanta poesia brotou. Eles estavam ali, tão perto de mim, e eu não podia ouvi-los, o som de suas vozes não era perceptível aos meus ouvidos, o assunto que tanto os envolvia eu nunca poderia saber. Sabia apenas que, para eles, eu era um ser inanimado, não poderia interferir naquela conversa. Tornei-me pedra por um instante tentando igualar-me aos ilustres, mas minha pobre carne, meu pobre sangue correndo nas veias, aquecia meu coração e a arritmia provocada pela emoção duma pobre alma traía meu desejo de tornar-me pedra, e dessa forma, não consegui sequer ouvir suas vozes. Olhei para os dois por uns instantes, amorosamente, desejei sentar-me ao lado e não tive coragem. É falta de educação sentar-me entre dois senhores conversando. Iria então para sua casa. Talvez, lá, eu fosse ficar mais à vontade.

Segui viagem.

A cada nova paisagem eu pensava e via o mundo quintanamente: o povo, as ruas, os ipês roxos que enfeitavam a cidade, os palhaços de rua, o moço com um carrinho de mão que levava cães e gatos, recolhidos na rua, a cidade abandonada pelo descaso dos governos, a mistura de povos e de costumes.

Até a casa de Mario foram várias quadras. Era final de tarde e o tempo estava quente e úmido. Fui recebida por uma moça jovem, cabelos presos ao alto da cabeça. Era gentil e me indicou como iniciar a visita.

Subi de elevador até o sétimo andar. Havia um café, uma varanda. Lugar acolhedor. Observo a vista da cidade, ouço um pouco alguns músicos se apresentarem e desço apreciando algumas obras de arte expostas nas galerias. Ansiosa, eu procurava por ele.

Naquele ambiente não havia guia, orientação qualquer. Segui até encontrar novamente a moça da recepção. Foi aí então que ela me indicou que poderia vê-lo no segundo andar. “Ele está lá no seu quarto”, ela me disse. Subi pelas escadas apressadamente. Entrei bem devagar e ele já me esperava na porta da sala. Cumprimentei-o repeitosamente. Olhei pela janela de vidro, sua mesa de cabeceira, sua escrivaninha, os óculos que tantas vezes acompanhou seus olhos na abstração da poesia da cidade, sua caneta sobre a mesa, alguns papéis com escritos, xícaras de café esquecidas em cada canto do quarto, sua estante de livros, a cama sem fazer, a ordem da vida, a poesia, a paixão, a solidão e a eterna beleza dos seus versos. Tudo pairava em minhas elaborações. Voltei-me para ele: sereno declamava a poesia Espelho.

Espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho:

Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)

Parece meu velho pai - que já morreu! (...)

Nosso olhar duro interroga:

"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.

Lentamente, ruga a ruga... Que importa!

Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre

E os teus planos enfim lá se foram por terra,

Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!

Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..." (Mário Quintana)

Silencio e mergulho em suas palavras. Lembro de meu pai e sinto saudades. Toco levemente seu rosto com os dedos, agradeço silenciosamente por sua vida, sua poesia e por ter aceitado a minha visita.

Não compreendo alguns fenômenos que a vida nos apresenta, mas foram as minhas confusões de memória que proporcionaram esse encontro. A gente nem sempre está receptivo as delicadezas que a vida nos traz. Acho que dessa vez eu consegui perceber.

“Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso”

(Mario Quintana)