O TELESPECTADOR

Eu vejo Osmaci acordando antes do dia claro, levantando do colchão encardido, posto no chão batido ao lado da parede com metade do reboco caído. Ele vai ao banheiro, mas não toma banho nem escova os dentes. Limita-se a urinar em silêncio, sorver em seguida um gole de café preto sem açúcar na cozinha, vestir a calça e a camisa de ontem e, antes de sair, deitar goela abaixo dois dedos da amarela que guarda no armário, junto aos potes de farinha e feijão, esse último jazendo vazio há mais de um mês.

Osmaci caminha aproximadamente quatro quilômetros, numa estrada de piçarra, margeada por galhos tortuosos de arbustos e cajueiros, até o lote arrendado onde planta mandioca e cria algumas rezes de cabras. Dali ele tira o seu sustento, e só o seu, já que não tem mulher nem filhos.

De onde estou, acompanho os seus passos lentos para o trabalho, ignorando as dores nos pés, pontilhados de “olhos de peixe” escurecidos e inchados. O médico deseja removê-los com uma agulha, mas Osmaci não quer, alegando que ele mesmo fará aquilo no final de semana, ao som da sanfona vindo do rádio de pilha e sob o efeito da aguardente. Ele não gosta do cheiro de éter do Hospital Municipal, nem dos médicos residentes. Eles não têm o couro curtido de sol, dentes apodrecidos, nem falam a mesma língua de Osmaci. Provêm, sem dúvida, de mundos diferentes, distantes e imiscíveis. A única que coisa que ele tem em comum com aqueles doutores é a expressão de indiferença para com o mundo ao redor. Ocorre que a indiferença de Osmaci é um escudo duro, permanente e necessário; já a dos médicos dura até o momento em que eles chegam em casa, ligam o ar-condicionado e bebem a primeira dose de uísque, bebida cujo sabor ele desconhece e jamais conhecerá.

Assim que chega ao terreno, Osmaci verifica o estado das cabras. Duas delas estão com tumores enormes e purulentos pendurados no pescoço. Ele não quer sacrificá-las pois há anos costuma consumir a carne desses animais doentes sem sucumbir, ele próprio, a mal algum. Observa os animais arrancarem o mato da terra seca e arenosa, enquanto amola o facão para ceifar as tuberosas enterradas no solo. Vejo o suor escorrer às bicas do rosto argiloso, com veias dilatadas nas têmporas, enquanto ele vai devastando a fileira de galhos que irrompem no caminho. Temo que aquelas veias explodam a qualquer momento, levando o homem a morrer de hemorragia ali mesmo, sozinho, enquanto eu me limito a vê-lo padecer sem poder ajuda-lo, já que, por força do hábito, só consigo vê-lo à distância, por cima do muro que separa os nossos dois mundos.

Ao meio-dia, Osmaci deixa o facão de lado, esturricando ao sol, para comer a tilápia frita com farinha que traz dentro de um depósito de plástico, iguaria gentilmente cedida por uma senhora que o chama de filho, assim como a todos os homens do povoado, casados ou solteiros, jovens ou maduros. “Tenho mais de trinta filhos”, diz ela ao visitante perplexo, exibindo um sorriso belo, sincero e sem dentes. Às duas da tarde, Osmaci agarra o cabo quente do facão e volta ao trabalho. Logo no início da segunda jornada, a cesta já está quase cheia de tubérculos sinuosos e roliços, de modo que hoje, por conta do trabalho adiantado, ele poderá sair mais cedo. Ao terminar a colheita, põe a cesta às costas e lamenta a perda de um jegue de carga, morto por atropelamento, meses atrás.

Vejo, com apreensão, as veias dilatarem-se com mais intensidade nos dois lados da testa de Osmaci e penso no que ele poderá estar pensando com um estorvo de seis quilos nas costas, a ser carregado por quatro quilômetros. Minha conclusão é a de que ele não pensa, pois pensar exige muita energia e toda a força vital de que dispõe Osmaci está concentrada nos músculos feitos para plantar, colher e andar por quilômetros, sem o benefício de um descanso justo e prolongado.

Enquanto Osmaci caminha de volta pra casa, deixo os olhos semicerrados para não ver-lhe a expressão do rosto nem os diques de sangue que latejam como um coração fora da caixa. Para mim, é suficiente a visão da silhueta humana com a coluna envergada para a frente, andando ininterruptamente, como se submetida a uma força motriz divina e digna de ser vista, com lágrimas de emoção, pelo mais visceral dos céticos. É assim, nessas condições, que vejo Osmaci percorrer todo o trajeto até chegar à sala da casa, onde solta a cesta com um barulho surdo no chão batido e toma um gole de cachaça para aplacar a dor nas costas e remeter o espírito a um lugar distante, livre do cheiro acre que emanam as macaxeiras recém-colhidas.

Antes das dez da noite, vejo, por fim, Osmaci deitar-se no colchão surrado, após deixar a calça e a camisa de hoje e de sempre estendidas na cadeira rústica, fabricada por ele. Antes de ir para cama, come uma porção de paçoca comprada na bodega ao lado de casa. E enquanto come, ouve música no rádio de pilha. Percebo que ele leva apenas cinco minutos para cair em sono profundo, sem dar espaço para o estado de semivigília. Vislumbro no rosto marcado e sério do agricultor uma inocência incomum para uma alma acostumada ao que há de pior na vida e na conduta humana. Osmaci dorme sem saber que amanhã bem cedo receberá a visita dos homens que o matarão, por conta de uma dívida passada e já prescrita perante a Justiça na qual ele, com razão, desacredita. Gostaria de poder avisá-lo do perigo que corre, mesmo que, para isso, devesse tirá-lo do sono tão profundo quanto justo. Mas não posso fazê-lo porque estamos, eu e ele, em lados diametralmente opostos, envoltos pelo manto intransponível da narrativa e do desprezo mútuos.

Nesse momento, fecho os olhos para não mais ver Osmaci.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 12/11/2018
Reeditado em 14/11/2018
Código do texto: T6500923
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