O astro da era do rádio.

Valdirene deixou o barraco, no Morro do Galo Cego e tomou a lotação rumo a orla carioca. Há cinco anos trabalhava na casa de um famoso cantor da era do rádio, meio esquecido pela mídia. Um senhor elegante, beirando os 90 janeiros. A esposa de Rodolfo Villar, Dulce, era rigorosa e meticulosa. Toalhas com os nomes bordados, lavadas e separadas por cores, refeições nas horas certas, produto certo pra isso e aquilo. Tantas outras coisinhas que deixavam Valdirene louca. Marlene, a outra empregada, pediu as contas pois estava esgotada. Valdirene foi ficando, ficando. O salário era bom e ela acumulou a faxina semanal, o que lhe rendia uns bons trocados. O marido Tinoco, doente, fazia bicos e cuidava dos dois filhos, Maicon, de seis anos e Deivid, de nove anos. Valdirene mantinha a casa. -" Gente rica e esnobe, como seu Rodolfo, nunca conheceram a pobreza!!!" Repetia ela. Jarbas, o motorista, trabalhava ali há 38 anos. Fazia de tudo um pouco. Era jardineiro, segurança, zelador, eletricista e companheiro de pescaria e carteado de Rodolfo Villar. Sabia tudo sobre a carreira do cantor. Rodolfo Villar gravara 39 discos, entre 1956 e 1989. Teve 12 melodias entre as melhores das paradas de sucesso. Chegou a vender 700 mil cópias com o disco Amor no Rio, onde o carro chefe era o seu maior sucesso, "Elvira". Fez uma ponta num filme de Elvis, rodado no Hawaii. Namorou algumas divas de Hollywood mas casou-se com Dulce, namorada de escola. Era, raras vezes, convidado para participar de um disco de um cantor emergente ou de algum programa de rádio. -" Senhor Rodolfo, a enfermeira da fisioterapia chegou!" Dona Dulce sorriu. -" Por favor, Valdirene. Me chame de Belmiro, meu nome de batismo!!" Ele ainda recebia cartas das fãs, umas trinta mensais. Um projeto do ministério da Cultura, patrocinado por uma multinacional, recolocou o nome do cantor de volta no cenário musical. Rodolfo Villar dividiria o palco do teatro Missouri com outros seis artistas em cinco durante dois meses. Um show por semana. Teria uma hora pra rever seus sucessos. Ele não precisava de dinheiro mas sim de carinho, aparecer nos jornais e revistas novamente. Os filhos, Henrique e Jardene, cuidavam dos dois apartamentos de Nova Iorque e da firma em Miami. O cunhado, Aparecido, tomava conta do hotel em Acapulco. A casa vivia, agora, tomada de repórteres e fotógrafos. Rodolfo apareceu nas principais revistas e sites da internet. O velho cantor se empolgou. Vivia sorridente. Passou a fazer Pilates e treinos numa academia. Abandonou o cachimbo e o conhaque. Cuidava da voz com carinho e passou a ser acompanhado por uma fonoaudióloga. Dulce levou os velhos casacos brilhantes pra lavanderia. A cartola e o sapato branco e preto receberam especial cuidado de Jarbas. O astro estava de volta. Dois dias antes do primeiro show, Belmiro caiu de cama. Febre. Corpo dolorido. O doutor Paulo Renato foi chamado. Enfermeiras contratadas. Belmiro se recuperou. -" O senhor nem vai aguentar cantar, seu Belmiro!!" Jarbas olhou feio pra empregada. -" Se eu arrebentar nesse show, bom!!!" Sorriu o velho astro, tomando chá de alho. O dia chegou. Belmiro se recuperou. Dulce fez questão que Valdirene e sua família fossem ao show. Ela odiava aquelas melodias antigas. Curtia seu funk no fone de ouvidos. A patroa insistiu e Dulce cedeu. Iria ao show. Jarbas levou-os na limusine. Os garotos adoraram. Uma mesa na primeira fila, onde jantaram. Tudo luxuoso e cheio de glamour. Rodolfo seria o derradeiro a se apresentar. No palco seria ele e um violonista apenas. Um banquinho e um microfone dourado. Dulce ajeitou a gola do casaco vinho do esposo. -"Comece com o "Samba do avião", querido!!" Jarbas deu-lhe um copo de água. -"Grato, amigo fiel!" Dulce o beijou e saiu do palco. As luzes do teatro se apagaram. O locutor anunciou a grande estrela da noite, Rodolfo Villar. No telão, dez minutos de um vídeo mostrou a carreira dele. Valdirene arregalou os olhos. Belmiro viera de Pernambuco, com cinco anos. Os pais faleceram e ele seria criado por um tio. Foi engraxate. Gostava de ouvir rádio e imitava os cantores. Venceu concursos de calouros e a carreira decolou. Os filhos eram adotivos. Valdirene, enfim, conheceu a verdadeira história de Belmiro. Foi aos prantos. A platéia levantou-se pois as cortinas de veludo se abriram. O velho astro deu um sorriso. Valdirene viu seis mulheres chorando, na mesa ao lado. Rodolfo soltou a voz. O público foi ao delírio. Dois minutos de aplausos calorosos. Valdirene se arrepiou toda. O velho era bom. Voz melhor que a do Rei, pensou. Entre uma melodia e outra, Rodolfo brincava com os fãs. Ele cativava a todos. Fim do show e Rodolfo tirou fotos com todos e atendeu a imprensa, maravilhada com o velho astro. Jarbas levou Valdirene e os seus pra casa. -"Lindo show, querido! Nossos filhos viram pela internet. Mandaram-lhe parabéns!!" Rodolfo sorriu. -"Fiz pra vc e Valdirene, com carinho." Dulce mudou o semblante. -" Percebo que ela chega cansada, bem cedo. Uma guerreira. Escuto-a comentando com Jarbas sobre a vida que leva." Dulce o abraçou. -"Quero comer pipoca, agora!" Dulce sorriu. -"Certo! Farei pra meu astro!" Eles ficaram conversando, por uma hora, na copa. O despertador tocou as oito horas. Dulce mexeu no ombro do marido, como sempre fazia. Ele nem se mexeu. Belmiro faleceu. Rodolfo entrava pra história da MPB. Jarbas foi chamado. Os filhos avisados. A imprensa idem. Valdirene, de folga, viu a triste nota no telejornal. O marido e os garotos choraram. O velório se deu na sala nobre da prefeitura. Dulce dispensou Valdirene por duas semanas. Dulce viajou aos States com os filhos. Valdirene tinha certeza que perderia o emprego. Jarbas foi ao morro... -"Valdirene!! Dona Dulce pediu-me que a levasse ao cartório!! Agora!!!" A patroa retornara e Valdirene temia levar um processo, uma bronca!!! Dulce a abraçou. -"Grata por ter vindo. Não será mais empregada!!" Valdirene estava certa. Seria despedida. Todos sentados, o advogado leu o testamento de Belmiro. Para Dulce e os filhos, Belmiro deixou os direitos autorais, casa e firmas no exterior. O cunhado ficava com o hotel. Jarbas receberia o velho Opala, a casa da orla e 38 milhões de reais. Valdirene receberia um apartamento na Tijuca e dez milhões de reais. Dulce estava certa, ela não seria mais empregada. Valdirene foi a uma igreja e rezou por Belmiro. Mais que um velho astro, um anjo em sua vida!!! (marcosdiasmacedo).

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 02/09/2018
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