SAIA JUSTA EM ESPERANÇA
Esperança é um vilarejo encravado nas montanhas do sul de Minas Gerais, pertencente ao município de Guaxupé, distando cerca de quinze quilômetros. Um lugar tranqüilo, talvez tenha no máximo umas vinte e cinco ou trinta residências distribuídas ao redor de uma praça, e no meio desta, uma igreja dedicada a santo Antônio. Contíguo à igreja, um salão social, uma escola e um pequeno posto de saúde. As ruas são largas e pavimentadas por paralelepípedos, as casas distantes umas das outras. As muitas árvores plantadas ao redor e o ar úmido da região, deixa o clima agradável lá no alto da montanha. Um pouco mais afastado fica um campo de futebol e, ao seu lado, um cemitério antigo já desativado por estar sem espaço para novos moradores.Um lugar pacato, habitado por pessoas humildes e simpáticas. As gentes que viviam ali pareciam felizes, levando uma vida onde o tempo não corre tão veloz como na cidade grande. Em sua maioria, residiam lá há muitos anos, passando por várias gerações, sem mudar seu estilo de vida regado a muita liberdade, pouca pressa e grandes ambições. Algumas pessoas trabalhavam na cidade de Guaxupé, mas a maioria era formada por cafeicultores que possuíam pequenas glebas de terra localizadas ao redor do vilarejo, e junto com familiares cultivavam suas lavouras. O bom preço do café que se manteve estável por vários anos permitiu àquela gente incorporar ao seu estilo de vida algumas coisas da vida moderna, como um carro novo ou uma moto nova na garagem, freqüentes viagens a passeio, o uso de eletrodomésticos e eletrônicos em geral, incluindo também a internet.
E foi assim, através da internet que Marcos, um pequeno produtor, resolveu comprar um refrigerador para presentear sua irmã Ana Maria, que casaria dentro de pouco tempo, na igreja de Santo Antônio, padroeiro daquela comunidade. Marcos acessou um daqueles sites de venda de eletrodomésticos, escolheu aquele que encaixava em seu orçamento e concluiu sua compra. Para a entrega do produto a empresa solicitou o endereço e um ponto de referência. Foi citado então a igreja de Santo Antônio, que ficava próxima a casa onde Ana Maria iria morar depois de casada.. Marcos ficou satisfeito com o atendimento oferecido pela loja e aguardava ansioso a chegada do seu presente, que segundo a empresa, seria entregue dentro de oito dias, tempo suficiente até a chegada do casamento.
Os preparativos para o casamento corria a todo o vapor. Ana Maria cuidava de tudo, para que tudo fosse feito ao seu gosto e dentro do prazo pré estabelecido. Afinal, junho estava chegando, e como diziam por lá, casamento é assim - marcou, chegou. Ela gostaria de se casar na véspera do dia de Santo Antônio, mas como naquele ano, cairia num sábado, deixou para o próximo final de semana, assim dava tempo também para participar da festa religiosa. O casamento então ficou marcado para o dia 19 de junho, às 16:00.
Às vésperas do dia da festa de Santo Antônio o padre Miguel e algumas mulheres trabalhavam na organização do evento, quando de repente, um caminhão baú estacionou ao lado da igreja. O motorista desceu e se dirigiu até uma daquelas senhoras:
— Bom dia! Somos da empresa Lar Feliz e viemos fazer uma entrega. A senhora pode chamar o responsável pelo recebimento da mercadoria?
— Claro! Vou chamar o padre Miguel- disse cheia de entusiasmo.
— Padre Miguel, venha. Estão chamando o senhor. Acho que é algum presente para a festa.
O padre Miguel estava limpando alguns utensílios utilizados durante as missas, deixou tudo e veio às pressas. Chegou até onde os homens esperavam com a respiração ofegante, devido a idade avançada:
— Bom dia meus filhos!
— Bom dia padre Miguel. Sua benção.
— Deus os abençoe.Em que posso ajudá-los?
— Somos da empresa Lar Feliz e viemos entregar um refrigerador.
— Um refrigerador! Posso saber quem é a pessoa que está fazendo esta maravilhosa doação?
— Um momento. Vou ver aqui na nota fiscal. Deixe me ver...ah.. é o senhor Marcos de Souza Ferreira.
O padre ficou pensativo.
— Marcos, quem é ele? perguntou às senhoras que o ajudavam.
— Ora, só temos um Marcos aqui em Esperança. É o filho da dona Tereza.
— O senhor pode assinar aqui por favor. Estamos com pressa.
Claro.
— Onde podemos deixar a mercadoria?
— Podem levar lá para a cozinha do salão social. Inclusive já vamos começar a usufruir desta grande benção concedida por Santo Antônio !
— Até logo padre.
— Vão com Deus meus filhos.
No dia da festa Esperança amanheceu movimentada. Apesar de ser época da colheita do café muitos resolveram tirar uma folga, outros guardar dia santo - dia de santo Antônio. Também muitas pessoas vieram da cidade e regiões vizinhas, deixando o vilarejo cheio de gente.O frio já tinha chegado a região, mas nada que atrapalhasse o entusiasmo do povo. Uns soltavam foguetes, outros ajudavam na confecção da fogueira, outros ajudavam a erguer o mastro de santo Antônio, fixando-o na ponta de um bambu. Alguns agricultores se juntaram e compraram algumas caixas de fogos de artifícios. Para abrilhantar a festa contrataram um profissional de show pirotécnico que veio de Poços de Caldas. As mulheres mais velhas faziam doces, quitandas e salgados, enquanto as mais jovens apanhavam flores de são João para enfeitar o pátio, sempre sonhando, é claro, com um namorado encaminhado pelo santo casamenteiro.
Às 19:00 em ponto o padre Miguel começou a missa. A capela estava lotada. Alguns se amontoavam nas janelas na tentativa de ouvir tudo que se dizia lá dentro. O Marcos e sua família estavam presentes, assim como sua irmã Ana Maria. Na liturgia leram passagens dos evangelhos, cantaram, rezaram alguns padre nossos, concluindo com o sermão. Ao final,o padre Miguel fez alguns agradecimentos :
— Caros paroquianos de Esperança, amigos e irmãos visitantes, autoridades presentes. Nossa festa está muito bonita. Agradecemos a presença de todos. Agradecemos a todos aqueles que de uma forma ou de outra cooperaram na sua organização. Agradecemos também pelas ofertas e donativos, os quais serão utilizadas na reforma da nossa igreja e também faremos doações de parte do dinheiro arrecadado a um asilo da região. De maneira especial agradecemos ao irmão Marcos Ferreira de Souza, o Marquinho da dona Tereza, por ter doado um lindo refrigerador à nossa paróquia, que, diga-se de passagem, veio em uma hora muito oportuna, inclusive já está em uso.O padre levantou a cabeça a procura de Marcos.
Marcos, fique de pé. Vamos dar-lhe uma salva de palmas. Muito obrigado irmão, que santo Antônio continue abençoando você e toda a sua família. .
— Marcos não estava entendendo nada mas ficou de pé e abriu um sorriso. O vigário continuou:
— Sem mais delongas vou encerrar desejando a todos uma boa festa. Viva santo Antônio! Gritou o padre.
— Viva! Responderam todos euforicamente. E dentro de pouco tempo a capela ficou vazia.
E a festa seguia animada, com a multidão se esbarrando e num vai e vem frenético. Uma mistura de sons vindo de todos os lados obrigava as pessoas a falarem mais alto. Com um microfone na mão, e um som cujo volume aos outros se sobrepunha, um locutor tentava ditar o ritmo da festa, as vezes lendo bilhetinho do pombo correio, as vezes agradecendo a presença de todos,, as vezes recitando um verso.. Por vezes também agradecia pelas doações ofertadas a Santo Antônio, inclusive fazia referência também ao presente do Marcos.
E por falar no Marcos ele não estava gostando nada daquela história, pois sabia que aquela geladeira entregue ao padre na verdade era o presente que daria à sua irmã. E na tentativa de se esquivar do povo, preferiu procurar uma mesa mais afastada, onde se assentou com a esposa e filhos.. Tímido por natureza, sofria toda vez que alguém citava seu nome. Se fosse realmente dar um presente ao santo, certamente o faria no anonimato, obedeceria fielmente a Cristo quando disse que a mão esquerda não deve saber o que faz a direita.
A certa altura da noite o locutor convocou todos os foliões que participariam da dança da quadrilha. O sanfoneiro Virgulino se apresentou e logo começou a tocar as musicas de Mario Zem, moços e moças vestidos à moda caipira formavam pares e um a um entravam no ritmo da dança.
Á meia noite o povo já exausto se acomodou como podia para assistir o show
pirotécnico. Durante quinze minutos Foguetes multicoloridos rasgavam o céu de Esperança, arrancando suspiros de muita gente.
Na segunda feira ao completar 8:00 da manhã, Marcos ligou na Empresa. E logo foi atendido:
— Lar Feliz , bom dia!
— Bom dia - respondeu Marcos.
— Em que podemos ajudá-lo Sr. Marcos?
— Gostaria de fazer uma reclamação.
— Pois não. Do que se trata?
No dia três de junho fiz a compra de um refrigerador. Só que ele foi entregue em outro endereço.
— Entendo. Por favor me diga qual é o endereço indicado para entrega e qual o ponto de referência?
— Quando fiz a compra deixei bem claro que o endereço de entrega seria rua Duque de Caxias número 35, no bairro Esperança, próximo à Guaxupé. Como ponto de referência, citei a igreja de Santo Antônio, que fica bem ao lado.
— E onde foi que entregaram a mercadoria?
— Uai, acabaram entregando na Igreja de Santo Antônio. Foi sexta feira passada na parte da manhã, o Padre Miguel estava trabalhando na organização da festa quando o caminhão estacionou ao lado da capela e chamou por ele. Desceram a geladeira e disseram que era para ser entregue ali mesmo.
— Meu Deus. Talvez possamos falar com o padre Miguel e pega-la de volta.
— Mas nem que a vaca tussa. Nem pensar. Durante a missa o padre Miguel agradeceu a todos que fizeram doações e fez questão que eu ficasse de pé, me agradeceu e até pediu ao povo uma salva de palmas. Todo mundo aqui de Esperança está dizendo que dei uma geladeira de presente para a Igreja.
Houve um silêncio e uma pausa…
— O senhor pode me passar o número do seu CPF?
— Pois não.
— Olha, peço que aguarde. Logo entraremos em contato. Preciso consultar os nossos sistemas e verificar quem foram os funcionários envolvidos neste processo e assim tentar descobrir onde houve a falha.
— Olha moça, você pode pesquisar, fazer o que for necessário mas entenda uma coisa. Isto não é problema meu. Quero a minha mercadoria entregue lá no endereço indicado até quarta feira próxima. Afinal comprei e paguei à vista. Além do mais é um presente de casamento para minha irmã
— Ok. Senhor Marcos. Compreendo a gravidade da situação. Vou investigar e passar ao meu superior. Peço que tenha paciência e aguarde nosso contato.Tenha um bom dia.
— Bom dia.
Marcos guardou o celular e balançou a cabeça.
— Meu Deus, onde fui amarrar a minha égua….
Sua esposa fez uma observação:
— Também não sei pra que ficar inventando moda. Devia ter ido lá na loja em Guaxupé, comprava e você mesmo trazia e pronto. Preferiu mexer com a tal de internet, deu nisso.
— Deixa de bobagem. A culpa não é da internet e sim desta empresa incompetente. Muitos colegas já compraram pelos sites de venda e receberam suas mercadorias aqui em Esperança sem nenhum problema.
— Também não sei para que pedir ponto de referência num lugar pequeno igual ao nosso.
— É que quando a gente compra pelo site, se não colocar o ponto de referência o sistema trava e não deixa você concluir o seu pedido.
— Mas e agora o que vai fazer? O casamento de sua irmã está chegando.
— Vou esperar até amanhã cedo. Se não me ligarem vou entrar em contato novamente. Preciso resolver esta situação.
Mas à tarde Marcos recebeu uma ligação da empresa:
— Sr. Marcos é a Stefani que está falando.
— Pois não, Stefani.
— Conforme prometemos, estamos retornando a ligação para dar uma resposta sobre o caso da geladeira entregue no endereço errado. A falha foi da transportadora responsável pelas entregas. É um serviço terceirizado.
Marcos suspirou:
— Tudo bem. Resolvam isso. Entenda que comprei a geladeira da empresa Lar feliz . Portanto é ela que deve me dar uma solução.
— Sim, claro. Só estou explicando o que houve e quem é o responsável.
— No meu entendimento, para mim consumidor, só há um responsável, é a empresa da qual comprei o produto.
— Sim senhor.
— Quando receberei o que comprei?
— No máximo dentro de dois dias.
— Pois então resolvam logo esta situação senão vou ao PROCON, divulgo nas redes sociais, falo até com o papa se for preciso.
—Tenha paciência Sr, Marcos. Resolveremos o seu problema. Retornaremos a ligação o mais rápido possível. Boa tarde.
Desta vez Marcos perdeu a paciência e simplesmente ficou calado. E mais uma vez sua esposa fez uma observação:
— Tenha calma Marcos. Tudo vai se resolver logo, logo. Depois você não pode falar desta situação nas redes sociais.
— Ah é ? Posso saber por que?
— Uai teu nome também tá envolvido. Vão dizer que você se omitiu em relação a geladeira e acabou dando para a festa um objeto que não era seu. Podem falar também que você poderia ter chamado o padre Miguel e contado tudo a ele. Dai ele devolvia a geladeira e ficava tudo certo.
— Marcos levou as mãos a cabeça e exclamou: Meu Deus você tem razão. Meu nome pode cair na boca do povo .
— É na boca do povo já tá né. claro que de maneira positiva, só te elogiando. Mas podem passar a descer a lenha em você. Portanto, fique quieto, continuou a esposa:
— Sossega e espere a solução que a empresa dará. Deixe ela agir por você, eles também devem estar preocupados.
— No dia seguinte Marcos estava muito nervoso e aguardava com ansiedade uma resposta da empresa. Caminhava pela sala, saia no terreiro, voltava para dentro de casa, mexia sem parar no celular e toda hora ia na cozinha tomar uma xícara de café. Até que em torno de nove horas o celular tocou:
— Pois não.
— Bom dia Sr. Marcos é a Stefani.
— Bom dia e o que você tem pra me dizer?
— Tenho ótima notícia para o senhor. Nossa empresa vai lhe entregar outro refrigerador o mais rápido possível. Com relação aquele entregue na igreja por engano deixaremos de presente para o padre Miguel. Alo Sr Marcos, tá me ouvindo?
— Sim claro. Fico muito satisfeito. Só que tem um problema.
— Qual é o problema Sr. Marcos?
— É que para todos aqui quem deu a geladeira de presente para Santo Antônio fui eu, e esta situação me incomoda.
— Vou conversar com meu superior sobre isto. Peço ao Senhor que observe sua caixa postal, pois o gerente do departamento de relações com o cliente estará lhe enviando uma mensagem esclarecendo tudo sobre a entrega da sua geladeira.
— Alguma dúvida Sr. Marcos?
— Não. Tá tudo certo.
— Então tenha um bom dia.
— Bom dia.
— Marcos suspirou aliviado. Ao menos teria a geladeira para entregar a sua irmã. Depois arrumaria um jeito de desfazer o mal entendido com o padre Miguel.
Bem de tardezinha Marcos chegou da lavoura de café, tomou um bom banho e a primeira coisa que fez foi acessar sua caixa de mensagens. E encontrou um e_mail enviada pela empresa Lar Feliz S/A;
Caro cliente Marcos Ferreira Lopes;
Primeiramente agradecemos por optar em adquirir nosso produto, e, ao mesmo tempo pedimos desculpas pelo transtorno causado ao senhor e sua família. Ficamos incomodados quando surge um problema relacionado aos nossos clientes, pois trabalhamos constantemente com o objetivo de satisfazê-los, desde o momento que ele acessa o site até aquele quando recebe sua mercadoria em casa.
Nossa empresa está no mercado há trinta anos, temos trezentas lojas espalhadas pelo Brasil, somamos vinte e cinco mil empregados e colaboradores. No início éramos muito pequenos e fomos crescendo graças ao empenho e dedicação de seus fundadores e funcionários que já passaram ou ainda estão trabalhando na empresa.
Hoje estamos entre as maiores redes de lojas de eletrodomésticos do país. E para mantermos este lugar de destaque sempre oferecemos aos nossos clientes um bom atendimento, vendendo produtos de alta qualidade e praticando preços justos .
É nossa missão zelar pela imagem da empresa, pois nossa responsabilidade é grande, considerando que além de visarmos o lucro como premissa para a perpetuidade da empresa, exercemos também um papel social gerando emprego e renda, contribuindo assim com o crescimento do país.
Portanto, coerentes com nossos valores, decidimos entregar ao senhor até a próxima quinta feira, outro refrigerador com as mesmas especificações relacionadas ao seu pedido . Como contra- partida só pedimos uma coisa: Que o padre Miguel faça uma oração pela nossa empresa, reze alguns padre nossos, grave e nos envie por e-mail. Mais uma vez pedimos desculpas pela nossa falha. Este fato nos servirá de exemplo para que não ocorra mais. Quanto a contar a verdade ou não ao padre Miguel, fica a seu critério, haja de acordo com sua consciência.
Cordialmente
Alexandre Neves da Silva
Gerente de Relações com o Cliente.
Marcos ficou satisfeito com a mensagem recebida, mas como todo mineiro, pôs em sua cabeça que só acreditaria naquele falatório todo somente quando a geladeira estivesse em suas mãos. Também achou graça quando pediram que o padre rezasse em favor da empresa. Mas em todo caso alimentava a esperança de que aquele pesadelo logo chegaria ao fim.
E não é que na quinta feira a geladeira foi entregue ao Marcos! O caminhão baú parou em frente a sua casa e buzinou diversas vezes, deixando todo mundo apavorado. Marcos se apressou e saiu na rua.
— Bom dia Sr. Marcos.
— Bom dia!
— Somos da empresa Lar Feliz S/A. Viemos entregar sua geladeira.
— Pois não. venham comigo que vou acompanhar vocês até a casa onde vamos deixar a geladeira. Marcos então saiu a pé e caminhou por dez minutos a frente do caminhão que seguia em marcha lenta e logo chegaram.
Naquele mesmo dia Marcos ligou na Diocese de Guaxupé para saber onde o padre Miguel estava atuando, considerando que cada dia ministrava em uma igreja da cidade. Informaram que estaria no bairro Filadélfia. Então se dirigiu para lá.
Ao chegar, encontrou a igreja vazia, caminhou até o confessionário, mas o padre não estava. Por instantes pensou que tinha perdido a viagem. Foi então que uma senhora entrou por uma das portas laterais trazendo uma vassoura e outros utensílios de limpeza. Marcos se dirigiu até ela:
— Boa tarde minha senhora!
— Boa tarde.
— Por acaso o padre Miguel está por aqui?
— Sim está lá no seu quarto descansando um pouquinho.
— É que eu gostaria de ter uma palavrinha com ele.
— Aguarde um minutinho que vou chamá-lo.
Depois de uns vinte minutos o padre chegou até onde Marcos estava.
— É você Marcos. Que prazer revê-lo. Veio trazer outro presente ?
— Não padre Miguel. Desta vez não trouxe nenhum presente.
— Estou brincando meu filho. Para um padre o maior presente é a visita dos seus fiéis. Como está o pessoal de Esperança?
— Estão todos bem. Mandaram um abraço.
— Vamos lá na casa paroquial tomar um cafezinho e comer um pão de queijo.
— Obrigado Padre. Fica para outra hora. Estou com um pouco de pressa. Na verdade gostaria de me confessar com o senhor.
— Claro! vamos ao confessionário.
Marcos não encarava aquele gesto como confissão de pecados, mas apenas como meio sigiloso para esclarecer o mal entendido gerado pela entrega indevida da geladeira.
— Pois não meu filho fique a vontade.
— Bem padre Miguel quero esclarecer um mal entendido que tá tirando o meu sossego.
— Fale filho.
— É que aquela geladeira que o senhor recebeu no dia da festa de Santo Antônio não fui eu que dei.
— Meu Deus ! Então quem foi ?
— É que houve um engano. Eu tinha comprado uma geladeira para dar de presente a minha irmã Ana Maria, que vai se casar depois de amanhã e inclusive o senhor vai fazer a cerimônia.
— Sim claro. Continue.
— E quando comprei, a loja pediu um ponto de referência e eu citei a igreja de Santo Antônio. Acontece que ao invés de deixar na casa onde a Ana Maria vai morar, entregaram para o senhor lá na igreja. Como eu e minha esposa estávamos pra roça cuidando do terreiro cheio de café e só chegamos sábado de tardezinha, não ouvimos nenhum comentário a respeito. Só fui ficar sabendo quando o senhor me agradeceu na hora da missa. E naquela hora fiquei sem graça e não tive coragem de desmentir o senhor. Sei que errei e por isso peço desculpas.
— Não Marcos você não precisa pedir desculpas. Confesso que estou surpreso com tudo isto, mas parece-me que quem deve pedir desculpas sou eu. Afinal, agi precipitadamente. Eu deveria ter esperado e confirmado com você se realmente era um presente para a igreja. Outro erro de minha parte foi ter te agradecido na hora da missa. Obviamente que o erro maior foi do entregador. Digamos que houve uma sucessão de erros.
— Então padre na hora que o senhor me agradeceu não havia clima para dizer o contrário. Depois que saí da igreja muitos vieram me dar os parabéns pela iniciativa de dar uma geladeira nova para a igreja.
— Neste caso confesso que devo comprar outra para sua irmã.
— Não padre Miguel. Não precisa se preocupar. Depois disto tudo liguei várias vezes na empresa onde fiz a compra e após muita insistência resolveram dar outra.. Disseram que aquela que está lá na igreja vai ficar como presente da empresa. A Minha já entregaram hoje na casa da Ana Maria.
— Meu Deus que loucura! Não, não posso aceitar isto. Não é justo.
— Mas eles insistiram Padre Miguel. Inclusive trouxe uma carta escrita pela empresa que o senhor pode ler.
Padre Miguel pegou a carta e leu. E ficou surpreso com a postura da empresa:
— Ah quem me dera se toda empresa agisse assim ! As relações comerciais seriam muito mais frutíferas e harmoniosas. Valha-nos Santo Antônio.
— Mas tem outro problema padre.
— Qual é ?
— É que perante o povo fui eu que dei a geladeira e neste caso sou um mentiroso. E isto me preocupa. Quero que conte a verdade ao povo de Esperança.
— Não, não considero que você mentiu. Quem mentiu fui eu afirmando que você nos deu de presente.. Mas, como diz a carta da empresa, haja de acordo com sua consciência. Se quiser assim posso contar.
— Sim eu quero padre. Conte durante o casamento da Ana.
— Está bem se este é o seu desejo. Vamos aproveitar e faremos também uma oração para a empresa. Ela merece.
— Então vou indo padre. Sua benção.
— Vá com Deus meu filho e fique em paz . Dê um abraço ao povo de Esperança.
No dia do casamento Esperança estava em festa novamente. É que a noiva era uma ilustre filha do vilarejo. Ana Maria, além de atuar como excelente professora na escola local, era descendente da mais antiga família do lugar, e soma-se a isto o fato de ser também bastante numerosa. Naturalmente na hora do casamento a capela de santo Antônio ficou tomada quase só pela sua família. Os lugares restantes foram ocupados por colegas de trabalho, alunos e amigos. Como em todo casamento o clima era de muita alegria, muita gente bonita e elegante. Marcos estava feliz pela sua irmã e também pelo fato de que naquele dia poria um fim no mal entendido envolvendo ele e o padre Miguel.
A cerimônia seguiu a tradição, primeiramente com a entrada dos padrinhos, entrada dos pais do noivo juntamente com ele, e depois de uns vinte minutos de atraso entrou a noiva acompanhada de seus pais. Padre Miguel seguiu com os rituais de praxe,: juramento dos noivos, colocação das alianças, um breve sermão e a benção final, tudo acompanhado por belas musicas ao som de saxofone e violino.
Antes de encerrar padre Miguel se dirigiu ao povo:
— A pedido do Marcos gostaria de esclarecer uma situação. Primeiramente estou muito feliz pelo casamento de nossa irmã Ana Maria. E posso dizer que este casamento já deu fruto.
— Houve um murmúrio entre os presentes.
— Padre Miguel percebeu que havia cometido uma gafe.
— Desculpem-me. Não é isto que queria dizer. Fiquem tranqüilos que explico. Quantos estavam presentes no dia da festa de santo Antônio?
— Muitos levantaram a mão.
— Pois é, naquele dia vocês se lembram que agradeci ao Marcos por ter doado um refrigerador para a igreja ? Acontece que depois ele contou que não foi ele.
— Novamente outro murmúrio entre o povo.
— Vou explicar também. O Marcos comprou o refrigerador para presentear a Ana Maria. E quando fez a compra pelo site deixou como referência a igreja de Santo Antônio. Todo mundo sabe que o ponto de referencia é indicado para facilitar a localização onde a mercadoria será entregue. Mas neste caso não adiantou nada pois os entregadores fizeram a maior confusão e deixaram a geladeira lá na igreja. O entregador chegou e falou com convicção que o presente seria para nós. E eu, precipitadamente recebi sem confirmar com o Marcos se de fato era um presente. Até porque estávamos precisando desesperadamente de um refrigerador novo, não é gente. O que tínhamos era muito antigo, gastava muita energia e não funcionava bem. Nem pensei que poderia ser engano, pedi para levar para a cozinha e já começamos a usar. E para piorar, à noite durante a missa agradeci ao Marcos de maneira efusiva. E ele, coitado, ficou numa saia justa. E agora quem está numa saia justa também sou eu.
Alguém da congregação fez uma observação: Padre Miguel desculpe interromper o senhor mas a empresa também ficou numa saia justa.
— Muito bem observado meu filho! Realmente a empresa também ficou numa situação desagradável, inclusive e principalmente os entregadores, coitados podem até perder o emprego.. Mas o Marcos me procurou e esclareceu tudo. Depois que agradeci a ele durante a missa, ele desconfiou que tinham feito confusão. Então ligou rapidamente na empresa para reclamar. E depois de muita insistência afirmaram que o serviço de entrega era terceirizado e que a responsabilidade seria da transportadora. Mas o Marcos insistiu argumentando que não tinha comprado nenhuma geladeira da transportadora. Argumentou também que não havia clima para tirar a geladeira da igreja. Por fim decidiram entregar outro refrigerador para o Marcos e deixaram o outro como presente para a igreja. Entenderam porque afirmei que o casamento de Ana Maria já tinha dado fruto? Sabem daquele ditado - Deus escreve certo por linhas tortas. Foi o que aconteceu. Todos começaram a bater palmas comemorando o desfecho daquela confusão.
— Por isso o Marcos pediu que eu falasse sobre o ocorrido durante o casamento. Para que fique bem claro que não foi ele quem deu o presente, como eu havia anunciado. Marcos agiu corretamente e por isso merece outra salva de palmas. E não é só isso. A empresa pediu que fizéssemos uma oração, gravasse e enviasse por e_mail. Então para encerrar esta cerimônia vamos ficar de pé e rezarmos pela empresa. Todos se levantaram, o padre então orou:
— Oh Deus, obrigado Senhor pela existência da empresa Lar Feliz S/A. Obrigado porque ao longo dos seus trinta anos de existência ela tem realizado o sonho de milhares de pessoas, oferecendo produtos e serviços de qualidade. Obrigado também pelos milhares de empregos criados, os quais tem proporcionado o sustento a inúmeras famílias espalhadas pelo país afora. Senhor tende piedade da empresa Lar Feliz S/A. Não permita que casos como o que aconteceu em Esperança venham se repetir em outros lugares. Dai sabedoria e bom senso a todos os seus funcionários, começando pelo presidente até o posto de serviço mais humilde, que todos estejam trabalhando sempre com muita atenção, dedicação e entusiasmo, e assim oferecer constantemente um bom atendimento aos clientes, permitindo com isto a continuidade dos negócios. Amem..,
— Assim encerramos esta cerimônia agradecendo a presença de todos e desejando ao casal muitas felicidades. Vão todos com Deus.
A congregação bateu palmas para os noivos e saíram para o salão de festas onde seria servido um delicioso jantar com feijão tropeiro, arroz, salada de couve e pernil assado.
Passados oito meses a empresa Lar Feliz S/A entrou em contato com o padre Miguel. Agradeceram pela oração e afirmaram que todas as lojas tinham adotado como padrão a prece feita pelo padre, a qual deveria ser recitada por todos os funcionários ao menos duas vezes por mês e antes do expediente. Afirmaram também que o caso de Esperança foi amplamente debatido entre os funcionários e após tais medidas os índices de erros foram reduzidos em torno de trinta por cento. E como forma de gratidão ao povo Esperancense, decidiram que todos de lá que se casassem durante o período de um ano, teriam trinta por cento de descontos na compra dos presentes..
Com tal decisão o padre Miguel realizou em um ano uma quantidade de casamentos que não tinha feito em toda a sua carreira sacerdotal. E o número de casas do vilarejo pulou de trinta e oito para sessenta e sete.
Correu um boato na região afirmando que muitos noivos estavam se casando em Esperança para trazer sorte. Afirmava também que o padre Miguel estava com a agenda lotada e o vilarejo tinha perdido sua identidade devido aos transtornos causados pelos visitantes. Mas era só boato.
Fim