A MORTE MAL ANUNCIADA

O doente agonizava em seu leito, aguardando o chamamento do Além. Depois de uma via sacra pelos hospitais, foi desenganado pelos médicos. Retornou para sua casa apenas para enfrentar a morte em luta renhida e desigual. Nem padre havia para lhe rezar um réquiem, direito pertinente a todo cristão moribundo. Bateram à porta de Pedro Salgado, sacristão oficial e dublê de diácono. Suas preces deveriam ter algum efeito na hora do desencarnado pesar suas ações na balança de São Miguel, tarefa necessária antes de carimbar o passaporte eterno na alfândega de São Pedro. Por via das dúvidas, chamaram também as beatas da Baixa da Lagoa e adjacências a fim de que unissem suas ladainhas à do sacristão.

O suspiro final aconteceu quando as beatas rezavam a Ladainha de Nossa Senhora pela qüinquagésima vez. Notou-se um sorriso de alívio no morto. Seus ouvidos não mais ouviriam vozes tão desafinadas. Deu-se inicio ao funesto ritual que os mortos reservam aos vivos: avisar aos parentes, coveiro, cartório, funerária e comprar biscoito e cachaça pro velório.

Havia duas funerárias: a de Carlos Nunes e a de Manoel Legal. O morto preferia a do primeiro, porém ganhou a concorrência a Funerária São Manoel, a do Legal, vereador de três legislaturas e que privava da amizade do prefeito. Tinha tudo pra botar as despesas na conta da viúva, ou seja, a Prefeitura. A família era numerosa e a gratidão, eterna, viria nas urnas.

Enterro não é fácil e há muito que ser feito. Cumpridas todas as formalidades legais junto à autoridade, o médico emissor do atestado da causa mortis, sem a qual não há morto legal, parte-se em busca da burocracia cartorial, no presente caso, exercida pela competente e sempre solícita oficial do Cartório de Registro Civil - e que após alguns anos de atividades ininterruptas em dedicação exclusiva às leis notariais e cartoriais, do alto de toda a sua experiência, brincou:

- O falecido está morto mesmo?

Não havia dúvidas de que estava. E Maria da Cruz, locutora da igreja, anunciava a todos, em possantes alto-falantes instalados na torre:

- Nota de falecimento: a família de Filomeno da Baixa da Lagoa cumpre o doloroso dever de anunciar o seu falecimento e comunica a todos que o seu corpo está sendo velado em sua casa, na Baixa da Lagoa, e será enterrado às 17 horas no cemitério local. A família enlutada, agradece a todos que comparecerem a este ato de piedade cristã.

Ariano, fiel escudeiro da locutora e sineiro oficial, batia os sinos freneticamente, em repiques de luto e que o povo já sabia interpretar os sinais estridentes do ding-ding, dong-dong. Era a reinvenção do código-morse.

Por volta das duas horas da tarde, o sol a pino, castigando a moleira daqueles que se atreviam a trilhar pelas estradas e ruas, becos e veredas, sem uma providencial cobertura na cabeça, alguém se lembrou de avisar ao coveiro Joaquim Horroroso – alcunha que fazia jus à estética facial - que iriam necessitar dos seus préstimos profissionais.

Joaquim Horroroso cumpria o seu ofício de coveiro com presteza e dedicação. Até então morto nenhum havia reclamado dos seus serviços. Dava garantia: em havendo reclamação do defunto, devolvia o dinheiro da família.

Demarcado o terreno com linhas de pedreiro, meteu a picareta no chão petrificado pelo solstício de verão. Foi interrompido por gritos histéricos de alguém, que pedia para ele parar o trabalho. O morto havia ressurgido das cinzas. Não havia mais morto. E não existindo morto, não há enterro.

- Nun quero nem saber! Morto ou vivo ele vai ser enterrado! Já me comprometi com o dinheiro de hoje e não há como voltar atrás não! – vociferou Joaquim Horroroso, fincando a picareta com raiva.

- Não se preocupe não, homem de Deus! Você vai ser pago como se enterro houvesse.

Joaquim Horroroso se acalmou ao ouvir estas doces palavras de consolo. Mágicas até. Descansou a picareta e pediu que o seu interlocutor narrasse aquela história de morto que ressuscitou, sem ser Jesus Cristo:

- Aconteceu o seguinte: Filomeno estava lá, deitado, durinho, bem comportadinho como qualquer morto. A mortalha e o cordão de São Francisco já preparados, as velas demarcando o local onde iria ficar o caixão, a água do café borbulhando no fogão à lenha, os bolinhos de milho sendo distribuídos, a cachaça rolando com fartura, as mulheres rezando o terço, quando alguém, no meio dessa harmonia mortuária, teve a desinfeliz idéia de lavar o defunto. Como o senhor sabe, é tradição naquela família não tomar banho, pelas mais esfarrapadas desculpas. Uma delas é que a água desbota a pele. Imagine! Quando tiraram a roupa do morto, no banheiro, e foram lhe jogar água, o dito cujo arregalou os olhos, deu um sopapo na cuia, chutou o balde d’água e saiu, sala afora, resmungando e soltando impropérios contra a limpeza de pele, causando um verdadeiro deus-nos-acuda, panacéia geral, no povo que estava no velório, com gente se espremendo na porta, na janela, outros ganhando o mato e muitos estão desaparecidos até agora.