Existências

As manhãs são mais agradáveis quando se levanta bem disposto. Isso não se discute. E as noites não o são? – Sim, naturalmente que o são. Na verdade, tudo depende do estado de espírito. Nada mais. Há dia em que você tem o desejo de ir a um restaurante, ou mesmo em casa: comer arroz, feijão e ovo frito. Pode, a princípio, parecer desequilíbrio. Mas creia, é apenas prazer. Estado de espírito. Ou caminhar feito andarilho por ruas sem nenhum atrativo, quietas, esburacadas. Ver pessoas diferentes. Mas pessoas diferentes? – Soa muito estranho – pessoas estranhas. O que as tornaria diferentes? Não seria o meu estado de espírito naquele dia, naquele local e olhando para aquelas pessoas, mirando-as à minha maneira?

Mas esses pensamentos só poderiam fertilizar-se na cabeça de um homem que necessitasse da comunicação, da escrita para sobreviver. Que fizesse delas o seu feijão com arroz. Que tivesse o compromisso de enviar por e-mail uma crônica, ou uma matéria qualquer para ser vistoriada e, logo, logo, editada. Onde buscar inspiração? – na própria vida, no dia a dia, às vezes no sofrimento das pessoas; nas desgraças. Porém, você como ser vivente, vulnerável tanto quanto outros tem de se revestir de mandante e sentir que o mundo é seu e que somente o outro está sujeito ao infortúnio. Nunca você. Em hipótese alguma. É uma ditadura branca, tão perversa. Vai matando aos poucos.

Essa faculdade perceptiva estava impregnada em Edilson Vasconcelos. Jornalista, escritor e pai. Somente ser pai o tornava comum – o resto vagava por entre mundos jamais visitados. Quanta vez saiu à noite buscando inspiração para o epílogo de um romance ou o desfecho de uma crônica. E outra vez que voltou sem ter captado nada. “É o estado de espírito – dizia sempre que voltava com a bagagem vazia...” – mas no outro dia voltava e repetia a mesma cena. O desânimo é arma negativa de qualquer ser, portanto, não deve ser usada nunca e em situação nenhuma. Até mesmo diante de um arrefecimento, ainda que temporário.

Tudo tem um tempo determinado. Vivemos, crescemos e perecemos. Os perecimentos são distintos para cada um de nós. Uns entopem a artéria, outros têm falências múltiplas de órgãos, outros são atropelados na calçada, e outros desenvolvem tumores malignos a partir da proliferação desordenada de células. E a ciência avança em seus estudos, melhora a qualidade de vida, dá sobrevida. Mas, ao final, o determinado não se modifica. Edilson e Ana Clara, esta também jornalista, tiveram Paulinho. O protagonista de uma nova história. Poderia até ser o inspirador de algum romance do pai, ou uma crônica da mãe. Ou nada mais que o filho querido que preenchesse o vácuo daquele apartamento, que às vezes era frio, escuro e chato. Quase sem vida.

Paulinho, como imaginado, crescia trazendo contentamento àquele ambiente. Ana Clara, mãe e jornalista, dava mais atenção ao primeiro, não menosprezando, evidentemente, o segundo: - conseguia conciliá-los. Ia menos ao jornal. Preparava as matérias em casa e as enviava por e-mail. Paulinho, contudo, obteve este privilégio. Durante quase todo o dia estava com a mãe, desfrutando daquele carinho meio desajeitado, mas materno. Edilson saia pela manhã e só voltava à noite, e tinha agora sob seus ombros o compromisso da divisão: outrora tinha olhos para Ana Clara; hoje tem mais um: Paulinho. Com certa desenvoltura estava conseguindo se dividir. Afinal, Paulinho foi planejado, sonhado e recebido pelos dois. E Ana Clara foi fundamental para que Paulinho viesse ao mundo, são e salvo. Era mesmo mais uma inspiração para seus incontidos sonhos, que cresciam a cada minuto, a cada dia e a cada noite, com os olhos fixos no computador e os dedos em ritmados movimentos no teclado. “É meu ofício – dizia Edilson com certo orgulho.” Um homem demonstra seus valores e aptidões quando deles se utiliza espontaneamente, prazerosamente... Não como mandar um cão deitar, o que nem sempre é o que ele quer.

As noites a sós minguaram; tinham agora um velador. A mania de bancar o enólogo, em noites frias, ao som de cativantes canções românticas, ganhara um aliado: Paulinho. Enquanto Edilson e Ana relaxavam, bem próximo estava Paulinho com seus apetrechos espalhados pelo chão. O sono não vinha... Mas um grande companheiro. E em nada atrapalhava a degustação. Em nada mesmo.

E Paulinho seguia crescendo, desenvolvendo-se. Já aproximava o seu terceiro aniversário. Ana Clara já tinha mais liberdade de estar mais tempo na redação, pelo menos o tempo em que Paulinho estava na escolinha. A rotina de Edilson não mudou tanto. Passava o dia todo na redação; à noite estava sempre em casa, trabalhando na maioria das vezes. E, claro, Paulinho rodeando-o.

Ana Clara sentia dores abdominais com maior frequência. Procurou o médico da família que lhe pediu alguns exames rotineiros. Sem comentários adicionais, pediu outros. E depois outros. Edilson começou a acompanhá-la aos consultórios, laboratórios, clínicas. Mas o médico tranquilizava-os: “precisa cuidados, mas teremos êxito – comentava o médico, apreensivo – sem aprofundar, pois necessitava de mais exames.”

Numa manhã, após Ana Clara entregar-lhe os últimos exames, o médico, dr. Clóvis, marcou um horário à tarde para conversarem, e fazia questão da presença de Edilson. Ana Clara ficou gelada. Acostumada a matérias de toda natureza, tinha certeza que havia algo muito complicado com ela. Recobrou as forças e foi para casa. Ligou para o marido, mas este já havia sido convocado pela secretária do dr. Clóvis.

Chegaram ao consultório em horário marcado: primeiro, Ana Clara; em seguida Edilson. Paulinho ainda estava na escolinha. Sentaram-se defronte ao médico. O médico era um homem branco, alto, olhos azuis, parecia mais um alemão.

- Vamos lá, amigos. Digo amigos com certa liberdade, por considerá-los e por vocês depositarem confiança em minha técnica há tantos anos. Podem até procurar outro profissional, mas tenho sempre o privilégio da palavra final. – Disse dr. Clóvis com a segurança de um profissional equilibrado.

- Somos todos ouvidos, dr. Clóvis. Estamos prontos para resolver juntos qualquer situação que porventura esteja presente. – Afirmou Edilson com certa ansiedade.

- Sim, dr. Clóvis. - Ratificou Ana Clara que explicitava aflição.

- Vou direto ao assunto. Não tenho hábito de fazer rodeios. Ana Clara está com um tumor maligno no fígado em estágio bastante avançado. Deverá ser submetida a quimioterapia e radioterapia. Mas advirto-os que é uma situação muito delicada, haja vista que o tumor está em estágio avançado o que, obviamente, já provocou a metástase. Ou seja, já houve o derramamento de células cancerígenas na corrente sanguínea na cavidade abdominal, afetando outros órgãos. Diante disso, o início do tratamento é agora. Vocês têm um bom plano de saúde?

- Sim temos, respondeu os dois quase ao mesmo tempo. - Aflitos.

- Mas, dr. Clóvis o senhor com sua larga experiência não enxerga a possibilidade de sucesso a partir de um bom tratamento? – Perguntou Edilson, suando feito chaleira.

- A ciência, como os senhores sabem está bastante avançada, mas do jeito que o tumor está em Ana Clara, a situação dependerá não somente da ciência, mas de uma ajuda espiritual. Vinda de cima mesmo.

Dois dias depois Ana Clara é internada e submetida à radioterapia e quimioterapia. Atendida por grandes oncologistas. Por sorte, o plano de saúde cobria todas as despesas, as quais, aliás, eram muito caras. O definhamento de Ana Clara parecia ocorrer por hora. Voltaria para casa em breve, dependendo da evolução do quadro.

Aproxima-se de um mês e ainda internada. O quadro não tinha evoluções satisfatórias. Os médicos que a atendiam já haviam relatado a Edilson que estavam desanimados. A reação às drogas estava transformando Ana Clara numa múmia; sem forças até para falar.

Uma semana depois Ana Clara deixou o convívio com Edilson, Paulinho, médicos e todos: morreu. O jornal perdeu a grande cronista; Edilson e Paulino a grande companheira. Edilson afastou-se do jornal por um bom período; não tinha condições psicológicas para escrever. Não tinha mesmo... Tentou, mas o pouco que escreveu não pode ser publicado: - o editor desaprovou – estava muito ruim – fugia aos padrões de Edilson. “Quando estivesse refeito, voltaria – determinou o editor.”

Edilson refeito, volta às atividades com voracidade. Queria recuperar o tempo perdido; tinha respeito aos seus leitores. Organizou-se para que não houvesse necessidade de ter alguém à noite para cuidar de Paulinho. Ele mesmo queria fazê-lo. Trabalhava durante o dia todo. Chegava em casa no início da noite. A babá deixava tudo preparado: mamadeira, papinha... Tomava um banho ( com a porta aberta ), enquanto Paulinho brincava nos arredores. Alimentava-o, comia alguma coisa, ligava a televisão e mais tarde dava a mamadeira para Paulinho que no máximo às 21:00 h dormia. Edilson desligava a televisão e ia para o computador. Ora matérias para o jornal, ora o romance. Compenetrado tinha menos tempo para sentir a ausência de Ana Clara.

O tempo foi passando. Paulinho já próximo ao quarto aniversário. Tudo dando certo, exceto Ana Clara que não voltaria mais. A casa vazia. Os finais de semana com apenas um amigo; acostumado com dois. Mas ia levando. Paulinho era um companheirão. “E certamente continuaria amigo mesmo quando atingisse a adolescência – pensava.” Houve dias que quedou-se diante da ausência de Ana Clara. Pensava muito nela. Uma mulher de grande amor. E ainda com toda meiguice e desvelo me deu o grande presente: Paulinho. “Esteja você onde estiver, Ana Clara, te amarei para sempre. Posso até mesmo conhecer alguém e amá-la, mas não será com a mesma ternura – pensava quando estava ocioso.”

O companheirão já começava a trazer da escolinha seus trabalhinhos e fazer questão que Edilson além de vê-los; comentar e elogiar. “Olha, Paulinho, você está cada dia mais esperto, inteligente e em breve trará a namoradinha para eu conhecer.” Paulinho não dava muita bola, às vezes xingava. Sempre tinha algo novo para mostrar para o pai. Edilson tentando suprir a ausência da mãe redobrava a atenção para com o filho.

Edilson antes de sair para o trabalho fazia as recomendações necessárias à babá. Dizia que seu telefone celular estaria ligado para qualquer necessidade. “Não hesite em ligar, caso necessite – dirigia-se à babá.” Uma vez ou outra pegava o telefone e ligava para casa para saber de Paulinho: “está tudo bem, Sr. Edilson. Pode trabalhar em paz – respondia a babá.”

Numa terça-feira, após o banho para ir para o trabalho, sentiu uma pressão forte no peito: um sentimento estranho, emoção, tristeza – não soube distinguir. Tomou o café, despediu-se de Paulinho que todos os dias o levava até a porta, pegou o carro na garagem e foi ganhar a vida. Trabalhou até 10:00 com pensamento naquela pressão sentida pela manhã. Desviou o pensamento, entretendo-se com uma crônica para a próxima edição. Mais ou menos 12:00 ( horário que Paulinho habitualmente saia para escolinha ), a babá ligou:

- Sr. Edilson. O Paulinho está reclamando que a cabeça está doendo, na região da nuca. Tem um pouco de febre e parece estar com o pescoço com pouco movimento.

- Estarei ai em menos de 40 minutos – respondeu Edilson, esbaforido.

Chegou no tempo previsto. Olhou Paulinho. Mediu a febre. Estava realmente com febre e bem alta. Ligou imediatamente para dr. Clóvis, que estava saindo para almoçar. “Traga-o imediatamente ao consultório, Edilson – ordenou dr. Clóvis.” Edilson pegou-o e em pouco tempo estavam com dr. Clóvis.

- Edilson, não posso afirmar, pois, depende da constatação de exames laboratoriais. Mas, é possível que seja meningite. Pelos sintomas parece ser a meningocócica C. Temos que encaminhá-lo a um hospital agora. Irei junto.

Dr. Clóvis prepara para acompanhar Paulinho ao hospital. Chama uma ambulância.

Edilson, apavorado, lembra de Ana Clara e dirigi-lhe, em pensamento, a mensagem “não o leve... eu preciso muito dele...”

No hospital, à entrada, já o esperavam. As providências são imediatamente tomadas: material para o laboratório, medicação... Em uma hora no máximo o laboratório emite o resultado. A inquietude e o desespero de Edilson são observados pelo dr. Clóvis, que com toda a experiência estava apreensivo com o estado de saúde de Paulinho.

Chega o resultado do laboratório. Dr. Clóvis, como médico avança para saber o resultado. Emudece. Infelizmente acertou o diagnóstico: meningocócica C. Coçou o queixo e encaminhou-se para encontrar Edilson.

- Edilson. Como o atendimento foi urgente talvez consigamos com que Paulinho não tenha nenhuma sequela. Mas é muito sério. Muito mesmo.

- Dr. mas pode acontecer o pior? – pergunta Edilson com lágrimas nos olhos.

- Sim, Edilson, é muito sério. Pode sorte a equipe médica desse hospital é muito obstinada, competente e preparada.

Edilson não arredou pé. Ficou ao lado de Paulinho. Dia e noite. O quadro clínico de Paulinho não evoluía. A equipe médica, a princípio, estava esperançosa. Mas no terceiro dia, houve uma piora considerável: - o coma. Edilson desanimou... No quarto dia na parte da manhã, Paulinho parou de respirar. Findou-se.

Edilson olhou o rosto do filho, deixando rolar uma lágrima. Fitou-o mais uma vez, exprimindo, entre a tristeza e a dor, todo o seu amor. Saiu. Andou. Andou. No início da noite foi para casa. Foi ao quarto de Paulinho, pegou seus apetrechos (brinquedos), colocou-os no canto esquerdo da sala, onde costumava ficar, enquanto Edilson estava ao computador. Abriu uma garrafa de vinho, encheu duas taças, colocando uma sobre a mesinha, outra ao lado do computador. Procurou na estante o CD de Vivaldi, o preferido de Ana Clara, e o colocou para tocar.

Sentou-se em frente ao computador. Abriu os originais de seu romance. Olhou firmemente a parede à sua frente. Voltou-se para o computador e pôs-se a digitar. Vez ou outra tomava um gole de vinho e voltava a digitar. Varou madrugada com os olhos grudados no monitor, não levantou sequer para ir ao banheiro. Compenetrado. Digitava. 05:24 h, dá um suspiro, faz um alongamento. Digitaria o último parágrafo. Continuou:

“O céu desce sobre nossas cabeças, forçando-nos o aprendizado, o entendimento, a perseverança, a ideologia. Mas isso não quer dizer que perdemos alguém ou alguma coisa. A pessoa, fisicamente, tem existência vitalícia; mas o amor: Ah! - o amor é perpétuo, eterno... Não há nada, nem ninguém que o faça desaparecer... Ainda que a pessoa pereça, o amor devotado a ela, jamais...”

Levantou-se. Banhou-se. Abriu a porta. Olhou com profundidade toda a sala. E saiu...