Desvalido

Poderia começar esta narrativa me apresentando, mas talvez se o fizesse você não se interessaria tanto por minha história. Trago, então, somente um resumo dos meus últimos dois dias e deixo que você tire suas próprias conclusões sobre o que me trouxe até aqui.

Estou em um navio. Um navio de cores escuras com muitas pessoas de pele e olhos claros. Todos vestem roupas que me parecem terem sido moldadas para seus corpos. Roupas que valem mais do que a vida de muita gente. Eu, no entanto, estou nu e envergonhado por estar com a pele suja. Tento me esconder, saio correndo, passo por uma porta e caio lentamente nas profundezas das águas geladas do oceano, que cobrem meu corpo, meu rosto, me afoga e me desperta.

Quando a água gelada me desperta, percebo que fora somente um sonho. No entanto, a água fria era real. Me levanto, após ser molhado, e me movimento pela grande cidade de São Paulo. Olho para os prédios, que parecem tocar as nuvens, e me encanto com tamanha beleza. Olho para o céu e questiono a existência de um criador. Por que ele faria com que um filho seu fosse tão humilhado, tão rejeitado, tão desprezado? Se seu objetivo fora promover a paz e o amor, por que vivemos em constante clima de guerra, desarmonia?

Mesmo com tantos questionamentos, com essa constante crise existencial em que vivo, só consigo pensar na fome que estou sentindo. A fome. Gostaria de não sentir tanta fome. Desculpe repetir tantas vezes a palavra fome, mas senti-la dói. Dói tanto que me obriga a procurar restos nos lixos de restaurantes e bares das ruas onde vago como um fantasma. Um sorriso invade meu rosto quando encontro metade de um lanche, ou restos de uma marmita, ou uma pequena quantidade de refrigerante. Porém muitas vezes essa felicidade repentina termina em menos de segundos, pois sempre há alguém, seja autoridade ou funcionários ou donos dos estabelecimentos, para me abordar e impedir que eu faça a refeição que, muitas vezes, é a única do dia.

Já andei mais de dois quilómetros e ainda não saí do lugar. Por todos os lados encontro as mesmas pessoas. Parecem todas iguais. Todas vestem roupas com cores bonitas, tecidos bons, sem nenhuma marca deixada pelo tempo. Ao meu lado passa um homem vestindo terno e segurando uma maleta e me pergunto como seria minha vida se eu tivesse tido as mesmas oportunidades que ele. Talvez eu já teria entrado em vários desses prédios que me encantam. Talvez já teria andado de carro. Talvez eu já teria feito pelo menos três refeições hoje. Me imagino sentado à mesa de café da manhã, com uma família feliz reunida e com bolos, pães, sucos... Melhor voltar à realidade, assim não sofro tanto ao pensar que tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse tido uma mãe e um pai. Eu até tive, mas eles me geraram e de cara já me entregaram ao mundo. Tive que aprender a buscar meu próprio alimento desde muito cedo. Mas eu não os culpo. Sei que eles tiveram uma vida conturbada e, se existe um Deus, sei que ele vai compreendê-los.

Tento conversar com uma senhora que está sentada esperando o ônibus em uma de minhas “habitações”. Só para constar, tenho várias. Uma em cada rua. Ou melhor, as ruas são minha habitação. Ao dizer a ela o quão lindo estava o dia, senti que seus olhos me miravam como se eu não pertencesse a esse mundo. Senti o medo que ela sentia de mim. Como não sentir medo de um homem que não sabe nem sua própria idade, que possui a pele suja, barba e cabelo compridos, roupa velha e rasgada? Mas, mesmo eu aparentando ser um bicho, um selvagem, sinto vontade de conversar. Sinto vontade de experimentar aquilo que as pessoas chamam de abraço. Ao vê-la agarrar sua bolsa com anseio de sofrer um assalto, pedi desculpas e tomei meu rumo. Claro que ao comentar que o dia estava lindo, eu fingi ter uma visão bonita da vida para ter com quem conversar, mas minha tentativa fracassou mais uma vez.

Já está quase escurecendo e ainda não encontrei um pedaço de hambúrguer ou restos de uma marmita ou uma pequena quantidade de refrigerante e tenho a sensação de que a fome que amanheceu comigo junto àquele jato d’água fria, me impedirá de cair no sono ou adormecerá comigo quando eu não conseguir mais ficar com os olhos abertos.

Estou em uma ponte. Uma ponte grande, com uma bela vista para um rio que parece não ter fim. Ao meu redor vejo carros que nunca havia visto antes. São brancos, pratas, pretos e vermelhos. Todos correm tão rápido que as pessoas de pele e olhos claros que dirigem não conseguem me ver. Eu, novamente, estou nu e tento me esconder. Corro, mas não tenho para onde ir. Então salto daquela ponte e, aos gritos, afundo lentamente nas águas geladas do rio, que cobrem meu corpo, meu rosto, me afoga e me desperta.

Quando a água gelada me desperta, percebo, mais uma vez, que foi um sonho. No entanto, a água fria era real. Dessa vez a água veio acompanhada de uma palavra que ouço com muita frequência. “Vagabundo”. Já ouvi tantas vezes essa palavra que hoje já nem me importo quando ouço. Já tomei-a para mim. Talvez eu seja mesmo um vagabundo. Não sei minha idade, mas nunca trabalhei. Não seria isso um vagabundo? Já tentei trabalhar de qualquer coisa em troca de um prato de comida. Mas quem daria oportunidade para alguém que mora nas ruas, que só toma banho em dias chuvosos, que causa insegurança nas pessoas por não saber falar direito e que as assusta quando sorri, porque não possui todos os dentes na boca?

Me levanto depressa, com as mesmas roupas rasgadas do dia anterior, molhadas novamente, e volto a caminhar pelas ruas da cidade com a esperança de que hoje eu encontre aquele pedaço de hambúrguer ou aquele resto de uma marmita ou aquela pequena quantidade de refrigerante. Como eu havia presumido no dia anterior, a fome adormeceu comigo e, da mesma forma, amanheceu comigo. Mais intensa. Ela nunca me abandona. Já até a considero minha melhor amiga, pois está comigo em todos os momentos.

Como todos os dias, caminho vários quilómetros. Vejo as mesmas pessoas. As mesmas roupas de cores bonitas, tecidos bons e que não possuem marcas deixadas pelo tempo. Vejo novamente homens vestindo terno e segurando maletas. Tenho os mesmos devaneios de estar cercado por uma família, que eu sei que jamais conquistarei, em uma mesa de café da manhã com bolos, pães, sucos.... Novamente tento conter meus pensamentos. Não é saudável criar expectativas sobre algo que eu sei que não vai acontecer. Deus, se ele existe, já me mostrou que essa é minha vida. Que vim ao mundo com um único propósito.

Hoje não reparei a beleza dos prédios. Acordei mais fraco do que ontem, pois ainda não saciei a fome dos últimos três dias. Uma pessoa que tem a alimentação correta desmaiaria se ficasse três dias sem comer. Eu, no entanto, já me acostumei. Já é normal para mim.

Continuo andando. Paro em frente a um restaurante e, sem que as pessoas percebam, roubo de uma mesa um pedaço de pão que foi deixado por algum cliente. Fujo, rapidamente, com um largo sorriso no rosto. Peço desculpa para a fome, mas ela precisará me abandonar durante as próximas horas. Como aquele pão tão rapidamente que mal sinto o gosto. Agradeço imensamente a um Deus que desconheço e, repentinamente, surge uma lágrima em meus olhos.

Sento-me no banco de uma praça e me coloco a admirar as árvores, os pássaros, a igreja à minha frente, as pessoas que conversam, se tocam, sorriem e, novamente, me vem à cabeça aquele mesmo questionamento. Sinto vontade de conversar com alguém. De perguntar como está sendo seu dia. De experimentar aquilo que as pessoas chamam de abraço. Mas isso não me é permitido. Não faço parte da sociedade. Sou apenas um enfeite de mal gosto que Deus, se é que ele existe, enviou ao mundo para estragar a paisagem da mística sociedade civilizada e perfeita. Para ser humilhado. Para ser ignorado. Para ser invisível. Para não ser ninguém.

Não tenho nome. Não sei minha idade. Não tenho razões para continuar. Mas continuo. Continuo respirando e lutando contra todas as crises que me invadem. Contra todos. Contra mim mesmo. E é assim que continuarei. A luta contra mim mesmo será constante.

Jonatã Nanetti
Enviado por Jonatã Nanetti em 18/01/2018
Código do texto: T6229150
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.