CSI Porto Alegre - Os Ratos no Laboratório
Você está começando seu turno de hoje. Espera receber uns três casos para análise por uma equipe de dez pessoas. Você verifica a lista de pendências no computador, e assume um dos trinta casos para análise pela sua euquipe. Você lembra que assiste CSI demais.
Desde criança, você sempre amou Química. Seus brinquedos favoritos foram jogos educativos de ciência e alquimia. Você sente um calorzinho fofo quando lembra as caras de surpresa dos seus pais no seu primeiro show doméstico de mágicas alquímicas. Foi apenas uma mistura de sulfato de cobre azul intenso, com o iodeto de potássio totalmente branco, que se tornou algo marrom-claro quase dourado, e depois, com um carbonato e mais vinagre, ficou azul-claro com bolhas de gás carbônico. Um espetáculo!
Então você prosseguiu, cursou Técnico em Química, graduação em Engenharia Química, fez pós em Análise Toxicológica, especialização Forense no exterior. Prestou provas para Perícia nas Polícias Científicas de vários estados, rodou quilômetros e voou milhas em busca dessa meta profissional. E agora trabalha aqui, neste laboratório sucateado, fazendo análise de cocaína e dosagem alcoólica todos os dias, e com salário parcelado.
Para não dizer que você trabalha só, existe a dupla de estagiários, que acaba fazendo trabalho de especialista. Isso cada vez mais exala aquele odor de passivo trabalhista. Você teve colegas muito bons, mas se aposentaram, e, desde então, o único concurso público foi embargado por fraude na banca. E você achava que isso era modinha só de prefeituras.
Você está colocando as luvas descartáveis, quando um telefonema ordena prioridade para o caso de morte que apareceu no telejornal local ontem à noite. Agora de manhã já é trend topic do twitter na cidade. Tranquilidade está em falta no estoque. Os repórteres mal entendem a linguagem técnica, e despacham suas matérias bombásticas. Só ajudam.
As amostras de sangue e urina chegaram, mas a identificação a caneta já está se apagando. Quando é que vão adotar os tokens e códigos de barras? Você torce para que as amostras não tenham sido, por engano, trocadas no meio do processo, por algum estagiário, ou motorista. E que tenham usado a concentração de conservante proporcional à da amostra. Muita coisa pode dar errado na cadeia de custódia, que o diga O.J.Simpson.
Na ficha, não consta nenhuma indicação de suspeita, apenas “morte a esclarecer”. Parece que nem olharam direito para o cadáver na hora de preencher esta requisição. Você se lembra de um brilhante equipamento screening toxicológico da série de ficção. E constata que, por aqui, a melhor triagem que tem é o velho cromatógrafo. Desde Breaking Bad, as raves ficaram ainda mais abastecidas de comprimidos mucho locos fabricados em fundos de quintal. Toda semana aparece um alucinógeno ou canabinóide novo. E a precisão da cromatografia, por aqui, ainda é a mesma das bibliotecas espectrais de dois anos atrás.
Você não pode assinar um laudo com base apenas na triagem preliminar de rotina, que é só uma extração ácida, básica, neutra. Não tem como saber se foi agrotóxico, energético, bentil, arsênico, moderex, ritalina, inseticida, anabolizante, chá de fita, paracetamol, sei lá.
Para qualquer confirmação das substâncias detectadas, você precisa do espectrômetro de massa. Desde que o ar-condicionado do laboratório sofreu com a piada do yes-break, você não pôde mais ligar o equipamento caríssimo hipersensível ao calor. Faz três meses. A gerência alega falta de verba para manutenção. No CSI não tem isso. Da outra vez, você enviou a análise para a fundação de pesquisa em saúde. Agora, você lembra que os técnicos de lá foram demitidos, e o equipamento foi desligado. Resta enviar ao laboratório da irmã daquele político. Eles fazem até análise de cabelo, vão cobrar uma nota.
Você quer separar a amostra em várias extrações. Confere a data de validade do solvente, está vencido. Vai ter que usar o novo. Mais custo. Você procura um frasco estéril para a separação, percebe que só tem vidraria reaproveitada. Talvez descontaminada, talvez mal lavada. Quem deixou isto aqui em cima da mesa perto do clorofórmio? Não tem outro frasco. Na tevê sempre tem material novinho. Você lava e desinfeta o vidro e acondiciona a extração da amostra. Você senta junto à bancada para preencher o formulário de custódia.
Você sente a bancada fria em seus antebraços, a sua respiração está suave, você quer se lembrar o que precisa escrever neste papel à sua frente. Mas onde está o papel? Sua vista vai ficando turva. A respiração vai ficando cada vez mais lenta, o frio vai tomando conta do seu corpo. A caneta cai da sua mão, você sente o gelado da bancada em sua bochecha. As imagens estão pouco nítidas, os sons parecem difusos. Sua consciência parece estar se distanciando, e uma sensação de conforto está envolvendo você.
Você abre os olhos e encontra a equipe de peritos do CSI. FIM1 Seus rostos estão sérios, eles têm uma morte a desvendar. Eles observam a instalação de um equipamento do tamanho da sua mesa de trabalho. Parece o modelo novo de espectrômetro que você viu no catálogo do fabricante. Agora submetem para processamento as suas amostras. A sala está fria também, o ar-condicionado voltou a funcionar, o LED verde brilha no no-break.
Então se voltam para uma gaiola sobre a mesa. Os dois habitantes lembram vagamente o Pinky e Cérebro que lhe inspiravam nas manhãs da infância. Estão manipulando tubos de ensaio, parecem fazer um show de mágica alquímica como os seus. Aquele que parece o Cérebro está bem gordo, fuma um charuto e usa smoking e cartola. O que seria o Pinky tem uma careca e um bigodão de gringo. De algum canto da memória, lhe vem: “O que eles querem fazer esta noite? Tentar dominar o mundo.” Você não torce mais por eles, agora seu cérebro repete “Que dê tudo errado!”. FIM2 Brain escreve algo num papel, mas nada aparece. Você lembra do número da tinta invisível, ele quer esconder. Você vê o líquido amarronzado no tubo. Eles dizem está sujo, que vão despoluir, resolver a crise. Misturam outro líquido, fica azul como o mar. É truque, você sabe, não é real, não tem validade nem lógica essa manobra toda. A análise detecta, a análise desvenda, ninguém enrola quem faz a análise.
A sensação gelada da bancada chega ao seu nariz. Você levanta a cabeça e encontra o velho cromatógrafo no mesmo lugar de sempre. Só o que você lembra é de que precisa analisar a fundo a coisa para desvendar que droga é essa, qual foi a armação neste crime. Você lembra que a análise sempre pega. E você também lembra que assiste CSI demais. FIM3