A gosma

Mamãe contabiliza uma viagem internacional. Foi à Polônia no iniciozinho de 1983, quando eu lá me encontrava lotado na Embaixada em Varsóvia. Pleno inverno. E com o país sob regime de exceção sob a severa ameaça de invasão da União Soviética, caso os milicos fraquejassem no enfrentamento aos sindicalistas agrupados sob a liderança do bigodudo Lech Walesa (em polonês pronunciado Lérr Vauensa).

Na capital polonesa, o frio, que frequentemente chegava a vinte graus negativos de Celsius, incomodava mais do que uma ou outra blitz policial. E assim, só em espaços abertos, e quando alguma ventania do Báltico resolvia dar o seu ar da (des)graça.

Mamãe maravilhou-se com a neve, de graça e imaculada, de dois palmos a cobrir nosso quintal, mas mais graça achou foi numa apresentação de balé russo, o Bolshoi Kirov, onde um bailarino lourésimo conseguiu esmaecer o fulgor das belas ninfetas que o rodeavam. Nureyev, Barishnikov, pra quê?

A batalha mais dura, mamãe teve que trará-la oral e estoicamente à mesa de Sua Excelência, o Embaixador Cadaxa que no almoço que lhe ofereceu serviu-nos, de entrada, la suprême délice de sa cuisine: escargots avec du beurre persillé. E eram seis em cada bandejinha.

A repugnância que cultivava pela gosma dos caramujos e lesmas de quintal se lhe materializou ali em plena mesa, enquanto o erudito anfitrião gourmand, após uns bons goles d'un grand cru de Bordeaux, exaltava les vertues de sa cuisine...Mamãe briquitou penosamente com o primeiro, e se rendeu - e graciosamente, os restantes da bandejinha, discretamente, mos cedeu. A fome que tinha foi que escafedeu.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 25/11/2017
Reeditado em 24/01/2024
Código do texto: T6181755
Classificação de conteúdo: seguro