Dom de ínguas?

Do berne na testa à extirpação das amígdalas, tive minha carga de dodóis na tenra infância, com quase todo e qualquer garoto de meu tempo, e de minha têmpera, porém nenhum foi mais sofrido por mim do que aquela íngua que peguei na virilha direita, quando comecei a frequentar a escola primária nas Escolas Reunidas José Lima Guimarães, do Brumado, no ano da graça de 1958. Ano em que viriámos a ganhar nossa primeira Copa do Mundo, na Suécia, e em que Eugenio Pacelli, dando seu último Pio, concluiria, não sem alguma controvérsia, uma era pontifical de requinte, para que seu sucessor, João XXIII, pudesse promover o aggiornamento da igreja católica na urbe e no orbe.

E a íngua? Creio até que rezei para que ela amadurecesse e estourasse logo. E a graça foi alcançada, por meio do estimulo de papai à paciência e mais ainda por suas mãos traquejadas que me expeliram, quiçá prematuramente, o carnegão, que era então não mais que o cão daquela pústula saliente.

De todo jeito, o processo doeu desde a sua manifestação inicial e a diagnosticação inguinal de papai. Sem poder sair da cama, papai levava-me para a sala e me depositava sobre a mesona preta - onde ele e mamãe alternavam corte e passação de roupas e, dali eu podia passar umas horas mais amenas e esperançadas, sempre com o trânsito e a curiosidade incessante da irmandade.

Papai, contudo, é que vendo meu sofrimento mais do alto me dava a maior parcela das atenções. Mas se da parte física e da emocional ele cuidava, eu lhe omitia toda a angústia e a inveja que passava, vendo, da mesa, a movimentação que o vizinho de tela, e colega de classe, Celinho, aparentemente sem intenção, fazia para me deixar tão miserável...ele nem ao menos chegava à sua janela pra falar um oi, um cê tá bão, nada...Do vizinho frontal, o Zé Ricardo eu esperava menos, e em igual medida sua atenção deixava de receber, uma vez que, no máximo, ouvia sua voz ao passar na rua.

O consolo, minguado e inguado que fosse, era o Chico do Duca, vizinho do outro lado de nossa casa, que, embora não fosse colega de turma, meses antes quebrara a perna por um coice de cavalo e que conhecera seu rude calvário. Imobilizado, era transportado numa padiola para o quintal pelos irmãos mais velhos, onde podia quentar sol e realizar suas obras fisiológicas, do liquido ao sólido, adubando laranjal que compunha maiormente o pomar da Companhia de Tecidos do povoado.

E ao cabo de uma semana quando a íngua ia completando sua maturidade, papai partiu para o seu sacrifício de Abraão, no que lhe cabia. E meu choramingar pouco o comovia. Expulsar o demo do carnegão era o papel papaial que lhe cabia. E comecei a desenvolver o dom de ínguas a partir daquele dia...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/10/2017
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