O SOL DA INVERNIA

Bom dia, digo ao travesseiro amassado, fronha babada de cansaços. As orelhas estão geladas e doem os joelhos. Aos ouvidos assustados goteja uma antiga canção no teto de zinco do galpão. Raios partem o céu, deixando antever o despertar da ira dos elementos. Chego à janela e a entreabro meio sem vontade.

O orvalho escorre. Um gato sorrateiro desaparece sob o assoalho nos respiros quase ao rés-do-chão. Ficam somente seus olhinhos espantados pela natural algaravia. Plantinhas alçam suas folhas e os ramos das avencas brincam ao vento. Um lagarto mouro corre no jardim entre verdes úmidos e também se abriga.

Sinto um mal-estar parecido com o íntimo temor, aquele mesmo da infância interiorana, nas férias de julho, no Monte Bonito, em casa amiga, longe do colo da mãe citadina.

Chove bastante agora e canivetes abertos mergulham na terra fofa dos canteiros preparados para o plantio. O vento solta alguns ais e sinto um tremelico. O sol escondido espia sem mostrar a cara. De dentro do galpão vêm alguns raios tremeluzentes e há no ar um pronunciado cheiro de fumaça de madeira verde.

Passeia ao longe um homem grande chafurdando na lama suas rotas botas de soldado ou talvez um marinheiro desertado de sua embarcação. Na mão direita carrega uma espada curva ou um leme, qualquer coisa assim. Na outra bruxuleia a tímida chama da lamparina. Se algum bom observador chegasse poderia ver e ouvir a voz do mistério e sua peculiar linguagem, forçando o sono e costurando cobertas sobre os medos.

Aqui dentro, os cobertores aquecem pés friorentos. Meias de lã não dão conta. Num repente, lembrei-me de tentar ler um pouco para enganar o desvario que havia na cabeça. Talvez conseguisse encontrar o verão nalgum lugar do infantil faz-de-conta.

Enquanto isto, o grandalhão de botas sete-léguas mergulhava nas poças de lama, cada vez mais perto... Senti que eu não havia morrido ao pressentir nas narinas o cheiro forte do café. A memória da língua aquecia desejos de fome e calor.

Penso: talvez pudesse haver um pouco de vinho para o almoço. O general Inverno é uma cobra coberta de musgos e se arrasta rapidamente entre as pedras.

Ouço o mar bravio que parece querer varar para além das dunas. Desenho um coração e rabisco um poema grávido de ausências. Apercebo-me corajoso, a vida seguia plácida e modorrenta no seu andar de tartaruga.

O portão se arrasta nas dobradiças. Um vulto desengonçado dentro de um pesado capote invadia o pátio falando grosso. Achegava-se com olhos esbugalhados, o rosto lanhado, num lilás quase roxo, lábios rachados, queimados pelo frio.

De supetão diz-me, entremeado num rígido gestual de reverência: bom-dia meu valente filho! E rispidamente joga sobre a mesa o leite da manhã e alguns nacos de pão dormido.

Saiu à rua e voltou. Na mão direita trazia uma lasca do pau-de-fogo recolhido das cinzas que dormitavam no galpão.

O sol chegara dúplice dentro da casa...

– Do livro A VERTENTE INSENSATA, 2017.

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/6078205

– In memoriam de José Anélio Saraiva (1912/2015), querido padrinho na Academia Sul-Brasileira de Letras, sediada em Pelotas/RS, em ato de posse realizado em 05/05/1995.