A chuva e o tempo
A tarde caía serena naquele inverno. Da minha janela, eu olhava a chuva escorrer pelas calhas, e me veio o tempo em que à fantasia e eu nos tornávamos unas, a correr por esses mesmos becos lamacentos da minha infância. Isso quando a temperatura passava sobre o termômetro zeloso de minha mãe. Lembro-me, que em minha época passada, os dias sempre pareceram maiores, e se era um dia chuvoso como este, pareciam-me eternamente infindo. Nunca havia uma temperatura ideal, pela manhã o frio, à tarde a quentura excessiva, somente depois de algumas chuvas seguidas, esse martírio de olhar a chuva apenas pela janela cessava e podíamos correr para as biqueiras, e nos banhar de chuva e lama, e, quando muito, nos aventurarmos até a próxima esquina que não distavam mais que cem metros da nossa. Uma aventura e tanto para nossas mentes infantis. A mesma casa, os mesmos cheiros... De terra molhada, de sopa... Hoje diante desse quadro imagético, pintando com os pincéis de uma memória saudosa, as cores me pareceram mais vivas, revive uma alegria, que suponho nem ter sido tão intensa na época, mas, para quem há muito pintou os olhos de cinza, qualquer colorido faz a festa. Assim, a tela tem os cheiros e as cores dessa saudade. Dessa vida que engavetei em algum lugar de mim, ou sei lá, se fui mais uma vitima de Cronos, esse senhor faminto que a tudo devora. A chuva tem esses cheiros bons, mas sempre trouxe consigo um aroma saudoso, melancólico, que na minha infância não tinha nome e eu apenas denominava por vontade de chorar.
Os cheiros se misturam de tal modo em minhas narinas, que já nem sei, se a melancolia dessa tarde, não será a lembrança do cheiro das mortes habitadas no ceio dessa morada. Tento retomar as cores vivas desse passado, mas como em toda tela, a vejo se desfigurando, absorta na poeira em uma parede de esquecimentos. Chegam-me uns gritos de: - Feche essa janela, esse bafo está quente! Ouço os nossos sorrisos, gritos de euforia, e de sustos dos trovões, que ainda hoje me fazem tremer de medo debaixo do lençol, mesmo sendo mulher feita, e aceitando as explicações da física para tal fenômeno. Quando criança gostava de olhar o arco-íris, e tentar desvendar os mistérios de sua existência, e quando às vezes minha mente infantil chegava a alguma “lógica”, me punha a traçar mapas imagéticos capazes de me guiar até aquele arco encantado. Certo que diziam que lá tinha um pote cheio de ouro, mas para mim, essa nunca foi à motivação de querer visitá-lo. Nessa tarde, vejo-me invadida pela mesma vontade de sentar no corte de luz que se faz ao longe, lá no horizonte. Imagino lá ter a felicidade que eu sentia noutras tardes de igual fenômeno. E não achem que sou ignorante, também compreendo mais essa reação física. Digo por que sendo eu adulta, já não posso crer nessas bobagens, nem no pote de ouro. Mas justificada minha maturidade científica, quero mesmo é me lançar nesses pensamentos infantis. Queria nessa tarde poder ser a própria mensageira de Juno, e poder pisar sobre essas cores. Quando criança, lembro-me que ele era mais bonito, acho que porque vinha acompanhado dos Pau-d’arcos, e estes também sempre me enchiam de uma euforia, e agora nessa tarde, mesmo sem mais existi-los, seu cheiro invade-me alma a dentro. Mas tudo parece pequeno e ao mesmo tempo tão imenso nesse revistar de mim, misto de águas doces e salgadas. Escorre dentro alguma fonte que deságua nas calhas dos olhos. E eu aqui nessa vontade infantil de querer me escorregar para fora de mim. Sinto uma vontade louca de escorrer por essas calhas, fazer-me lama e assim negar o barro da minha existência. Mais uma vez um grito, que me chega como um sussurro: - acorda, venha esquentar o coração! Percebo que já é manhã, e nunca essa frase me pareceu tão certa. Antes, quando ela me era real, chegava-me cheia de outros sentimentos: às vezes alegria, às vezes de preguiça, noutras me eram vazios. Mas agora! Tudo se turva em mim. E já nem sei mais onde começa a ficção e finda o desejo de retorno. Houve um inverno que a chuva me inundou de alegria, um em que essas lembranças pueris não me agoniaram, um inverno único, em que a felicidade se pintou de outras cores. Um inverno vermelho flamboyant em que os cheiros não mais eram apenas de terra molhada, apesar da estradinha de terra onde andei sorvendo a alegria desse inverno. Um aroma de sonho embriagava-me logo após cada chuva, ou mesmo durante. Numas dessas muitas tardes, me desvencilhei das vestes adulta, e me lancei nua a aventura de enlamiar-me, e me fiz bica de prazer entre as paisagens. Hoje onde o misto de angústias e lembranças faz fusão, misturam-se também saudade daquela estrada conhecida, anseio e medo de estradas futuras, e redesenho ao longe um pôr-do-sol por trás das carnaubeiras, que mesmo ainda acontecendo, já me enche o peito de uma lacuna infinda.