Cotidiano

Não tinha mais do que 40 anos. Pedreiro, uma mulher e 5 filhos.

Ficou cismado aquela noite, estranhamente excitado, acordou sua mulher no meio da noite, depois dela ter arcado sozinha com a dura missão de fazer seus filhos dormirem, beijou-a com um carinho diferente, ela sentiu a diferença nos carinhos e no jeito de amar de seu marido aquela noite. Amaram-se a noite inteira.

Logo pela manhã, João, como um trabalhador comum deveria pegar no batente logo cedo, estranhamente não sentiu-se cansado por não ter dormido, sentiu-se ainda mais animado com o dia de trabalho árduo que viria pela frente. Antes que saísse, acordou os seus filhos, enfileirou-os perto da porta de saída como fazia todas as manhãs, mas ao beijá-los na testa sentiu-se feliz, sentiu-se completo.

Andou seis quilômetros até chegar ao seu local de trabalho, o seu passo era comprido e tímido, passou pela barreira de madeira que evitava que os resíduos de cimento caíssem sobre o público que lotava as calçadas naquele sábado pela manhã.

Subiu ao andaime rapidamente, com a rapidez que só um expert pode ter adquirido ao longo dos anos.

Trabalhou como nunca havia trabalhado, e cada tijolo que encaixava naquele quebra-cabeças mais do que lógico parecia uma mágica difícil de ser realizada.

Soou o relógio, horário de almoço. Sentou-se cuidadosamente no andaime e tirou de sua pequena sacola uma tuppeware de aço, que conserva por mais tempo a temperatura da comida do dia anterior.

Devorou grão por grão como se estivesse comendo um belo pedaço de picanha mal passada, do jeito que sempre sonhara em comer.

Depois de comer, tirou de seu bolso um pequeno cantil de ferro, quase que completamente enferrujado, e bebeu grandes doses de cachaça que havia escondido de sua mulher junto com a sua caixa de ferramentas.

Não demorou para que sentisse o efeito do álcool subindo-lhe à mente, e no seu caminhar para urinar, caminhar cambaleante, João despencou por 19 andares.

Enquanto caía, sentia-se estranhamente feliz, estranhamente livre, quando seu corpo bateu contra o chão já não sentia dor, a sua respiração ia parando gradativamente e o seu coração bombeando cada vez menos sangue.

Logo formou-se uma extensa roda de curiosos que atrapalharam o socorro imediato que seria essencial para que João se mantivesse vivo.

João faleceu na principal avenida de São Paulo.

Estirado de bruços, João não fechou os olhos, não por falta de tempo, tempo agora era o que não lhe faltava, apenas queria aproveitar um pouco mais daquela luz radiante que quase lhe cegava, mas lhe dava uma estranha sensação de felicidade momentânea. Não pensou que sua viúva choraria, e nem que seus filhos ficariam sem pai, não pensou em nada absolutamente e se entregou finalmente a luz que lhe irradiava a alma.