Briga de casal
Da varanda de um casarão antigo no oeste do Paraná, um jovem casal experimentava uma escuridão nefasta. Era uma noite de inverno, bastante fria. O vento forte produzia um ruído ensurdecedor. A chuva quase perene já durava horas. Eles testemunhavam o mau tempo, cada qual com sua perspectiva. Seus olhares não se cruzavam, pois a mente e a natureza num estado de desequilíbrio, propícia à destruição, os atraiam num só golpe de força e de dominação.
Enquanto a atenção dos dois parecia se voltar para o movimento das coisas visíveis, o invisível se manifestava secretamente. Os demônios de fora, com toda agitação, ainda pareciam mais calmos do que aqueles interiores.
Não se ouvia a voz nem de um nem de outro: só o pensamento e a linguagem do corpo falavam; respondiam com dificuldades ao conflito conjugal instaurado.
Lucas estava visivelmente angustiado. A testa franzia num ato involuntário, e nesse mesmo movimento, os olhos cerravam. A fisionomia dele refletia uma expressão de quem acabara de se perceber num verdadeiro inferno. Desassossegado, nem piscava!
Thaís mordia os próprios lábios como signo de insegurança, de ansiedade até; depois, de cabeça baixa e um pouco envergonhada e arrependida, se apresentava humanamente como uma escrava das paixões.
A moça havia falado coisas da boca pra fora, mas, ao perceber a reação do marido, passou a um estado emocional tão profundo que, deixou a irmã e a sobrinha conversando sozinhas na cozinha e seguiu atrás de quem tanto amava até a varanda: lá permaneceram ambos em silêncio, lado a lado.
Ele se sentia desrespeitado por ela, desapontado, triste, nervoso, incompreendido, portanto, com a moral abalada. Por isso entregara-se aos prantos. Ameaçava deixar a morada da cunhada onde a discussão eclodiu. Olhava para o seu carro estacionado embaixo dos pinheiros do Paraná; parecia decidido conduzi-lo sem olhar para trás. Com a mente confusa, se sentia muito distante da mulher pela qual nutria um amor inefável, ele não se conformava com a nova configuração da personalidade da esposa que acabara de descobrir.
Antes de conhecer a família da pretendente e o arquivo que contava sua história de vida, até então, ela se apresentava como uma mulher doce e ingênua, sensível e amorosa, delicada e atenciosa, discreta e impositiva do auto respeito e do respeito alheio. Agora, dominada por ressentimentos, quase todos decorrentes das reminiscências do último casamento, que provocaram suas palavras inoportunas, ela se transformara em uma mulher problemática, arredia: com um modo de agir que confinavam os dois num mundo novo, ainda não desvelado por completo, secreto, confuso e aparentemente doentio.
Todavia, o amor segurara-lhe ali, ao lado dela, com os pés fixo no assoalho da varanda. Abandonava com gosto a crueza inexorável da realidade em face de uma região onírica, onde fosse possível a permanência de sua primeira impressão sobre a mulher que não desejava perder. Essa projeção da vida serviria ainda para aniquilar a dor instaurada pela ilusão esvaída, a qual dera lugar a uma verdade indesejada.
Lucas sonhava com o florescer de uma bela voz a dizer-lhe palavras comedidas, menos absurdas, leves, inteligentes, criativas, mais prudente, verdadeira, que endossassem as juras de amor que ambos se faziam.
No entanto, Florinda, a irmã mais experiente de Thaís, foi quem rompeu com o silêncio que mais parecia uma trama interna do casal: "está chovendo muito forte, entre cá pra dentro; converse um pouco que vocês vão se entender, ou o amor que sentem um pelo outro não é maior que todas essas acusações sem sentido?"
- Ela me tem dito coisas que nunca permiti a mulher alguma dizer - desabafa Lucas com desânimo - tenho lhe oferecido um amor incondicional, vivo vinte e quatro horas a sua disposição, estou certo de que agora, não estando mais na condição de mãe solteira, o respeito lhe vem dobrado. Ela mesma diz que eu preenchi a sua vida de coisas boas, que sou o homem perfeito, então por que...?
- Talvez uma revolta que ela ainda guarda no peito - comenta Florinda - a impeça de reconhecer o quanto você é bom marido, mas isso ela mesma deverá te dizer... não é mesmo Thaís?
Lucas invadiu a alma da esposa com um olhar penetrante, mas embora tivesse havido nesse ato um assalto, nenhuma certeza lhe seria arrancada, isto porque, esse gesto, por mais audacioso, não conseguiria controlar ou dominar um outro ser, cuja resistência é caracterizada pela própria diferença que cada um oculta e que os distingue.
Thaís não se intimidou. Embora arrependida por ter provocado a tensão, se manteve firme nas declarações, sem tentar retificar as palavras para empreender um novo sentido, que fosse menos arrebatador e, por conseqüência, mais interno ao costume. Falou com o rompante que lhe era peculiar:
- Eu nunca escondi que após a separação eu não desejava respeitar ninguém, e não respeitava mesmo e acabou! As decepções do primeiro casamento me fizeram pensar assim.
- Você é muito ordinária! -; Gritou Lucas desconcertado.
- Quem mandou você me dizer que tinha muitas mulheres quando me conheceu, por que você pode falar abertamente sobre tal coisa e eu não? Tive muitos namorados e com vários eu fui para a cama sim, que mal tem nisso? Por que o homem não suporta ouvir coisas como essas? Fiquei vários anos procurando alguém que eu amasse verdadeiramente, e essa procura se deu junto com a satisfação de meus desejos mais profundos: a sexualidade.
- Mas... Thaís, você afirmou que quando começamos a namorar não saia apenas comigo, mas..., que tinha outros homens com quem se encontrava, diz, é verdade?
- Agi assim com relação a outros namorados, não com você. Claro que com você foi diferente Lucas; pode ficar tranqüilo que eu decidi desde o início te respeitar; mesmo antes de nos casarmos sentia que nossa relação era mais que a de um simples namoro que não pudesse dar em nada. Você é o marido que sempre sonhei ter; estou muito apaixonada... talvez porque nunca me senti tão amada em toda minha vida. Tudo que disse foi para te provocar...
- Não sei quanto tempo irei levar para compreender o que está acontecendo, contudo, no momento posso dizer que não quero ficar longe de você, eu não saberia mais viver sem o teu carinho. O grande problema está na coragem que tem de dizer o que nenhum homem está preparado para ouvir. É por isso que você é vista, até pela própria família, sob um aspecto negativo; poucos dão razão a essa espécie de liberdade que você reivindica com tal comportamento. Chega! Vamos?
- Deixa eu falar só mais uma coisa, Lucas.
- Diga!
- Você, além de ser o homem que amo, também é um ser humano fantástico: poucos conseguiriam descortinar a aparência e alcançar a verdade mais enigmática que se encontra em mim.
Com um pensamento fulminante... Lucas responde serenamente:
- Quando se ama, toda verdade se resume na busca pela preservação desse amor, o que confere a esse sentimento o estado circular e vicioso. O poder do amor não está no desvelamento de verdades, mas em acomodar ao máximo as pretensas verdades, que sejam convenientes a perpetuação desse sentimento, o que de fato mais aprisiona o espírito do que o liberta.
O casamento de Lucas e Thaís não seguiu a linhagem tradicional, pelo contrário, somava aos ditos casamentos modernos: trinta dias de namoro foram suficientes para fundir suas vidas num ato matrimonial, porém, sem testemunhas, nada registrado oficialmente, nenhuma assinatura perante um juiz, nada de consentimento do pároco, enfim, um fato sem legitimidade para os conservadores que constituem parte do corpo social.
Mas, em que o casamento deve buscar sua legitimidade senão numa concepção mais livre, sem a sedimentação de cunho moral depositada pelo costume de uma sociedade que não quer perder sua configuração cristalizada, cujos valores só se sustentariam no interior de determinado período histórico?
Por um instante os demônios se acalmaram. Os dois mundos ganharam equilíbrio. O casal se despediu de Florinda... entrou no carro e... seguiu para casa.
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Este conto recebeu menção honrosa no Concurso de Contos Paulo Leminski, 17ª edição (2005). Este é um escritor Paranaense.