Os cabelos brancos do menino que andava descalço
O quarto ainda tá cheio daquelas goteiras! E Otávia vai continuar perturbando o meu juízo até que conserte isso, ou que eu adule algum dos vizinhos a subir aquela escada de madeira que segue mofando na garagem.
Essa madrugada foi a chuva. Ainda nos primeiros respingos a ventania afastou algumas das telhas abrindo tantas folgas no quarto quanto consegui encontrar. Algumas pequeninas. Outras tão grandes que fizeram uma poça d’água num canto do quarto. Isso não quis dizer que na manhã seguinte o sol não tenha desfrutado daqueles espaços para iluminar o quarto, talvez para me cegar nessa claridade toda; ou para mostrar que do outro lado desarrumado da cama já não há ninguém.
- Otávia? - gritei - Cadê meus óculos? E os chinelos? O piso tá gelado.
- Precisei dos teus óculos porque não encontrei os meus ainda – responde lá da cozinha – os chinelos tão aí pela sala. Ainda não entendi porque você andou descalço até o quarto.
Com as janelas e portas ainda fechadas foi difícil me aventurar pelo corredor porque aqui o vento não carregou telha alguma e tudo era escuro. Foi aí, olhando pra cima, fiscalizando embaçadamente se minha impressão era verdadeira, que eu parei, e fiquei nessa impressão de que eu estava fazendo, ou para fazer alguma coisa que tinha feito antes. Tem gente diz que isso é um déjà vu. Tem gente pra dizer também que pode ser da idade.
- Otávia, eu não enxergo nada sem os óculos. Você sabe!
- Tá, tá, eu sei. Mas vá assim mesmo que você encontra eles. E te apruma que eu tropecei neles nesse instante e só por acaso não caí!
"Encontrar o quê, mesmo?"
De repente alguém abriu a porta que dá pra calçada, e de lá eu vi um homem, adulto, e umas três crianças. Elas riem, todas sujas de terra e descalças. Devem ser as crianças da vizinhança que vivem brincando de gude e pião perto desse jardim em que Otávia gasta todas as manhãs. Vou lá lhes dar uma bronca quando escontrar esses chinelos.
Mas esse homem… parece que o conheço. Não vejo bem sem meus óculos, mas tem esse postura relaxada encostada naquele pé de Flamboiã trajado numa calça de pano grosseiro e uma camisa de mangas curtas, amarelada e desabotoada para aliviar do calor que deve estar lá fora. Bem sabido! Eu teria feito o mesmo. "Eita, voou o chapéu de palha dele"! Eu também tive um, que Otávia deu-me muito tempo atrás e voou, quando brincava na calçada com os nossos filhos, quando ainda eram crianças.
Cheguei mais perto para admirar, e expulsar as crianças dali e veja que me aparece às pressas um rapazote passando como uma bala pela sala e atravessando o corredor! Vai quarto a dentro como se ninguém morasse aqui!
- Você só pode tá doido, meu filho! - corri ao seu encontro, ainda descalço, puxando o ar para os pulmões - Que diacho…
Há um medo na cara dele que faz tempo que eu não via, e também um sorriso que os cantos da boca não conseguem esconder. Sentou à cama a fim de recuperar o fôlego da carreira que deu de lá pra cá, embora eu não faça ideia de onde seja o 'lá'. Quando cheguei mais perto para escutar aquela conversa dele consigo ouvi o seguinte:
"Beijei ela, meu deus, beijei. E ela gostou."
Olhando mais de perto, os olhos do menino não são estranhos. Tive amizade por eles.
Lembrou que esqueceu alguma coisa. Desta vez gritou, num lamento:
"Jesus, o pai dela vai saber que estive lá. Vou pegar o livro de volta, e ver ela mais um bocado, se der."
É engraçado ele dizer isso. Também tenho um livro que ganhei de minha mulher, pouco antes de começarmos a namorar escondido do pai dela. Eu era tão moço quanto esse rapaz. Corri novamente à porta para acompanhar o esquecido, e tropecei nos benditos calçados, sustentado dificultosamente pelo braço da poltrona:
- Argh! Que merda!
- Eu avisei - gritou Otávia, lá da cozinha..
Continuei a aventura ligeira em direção a calçada apenas para dar de frente com uma garota, de caderno a mão, num vestido simples, muito branco e que a cobre até as canelas. Vê-se que os sapatos eram pretos, mas foram surrados pela terra que é o caminho de onde vinha até nossa rua. Há uma leveza naquela pessoa, como se uma brisa acariciasse seu longo cabelo castanho, e a luz do sol, implicante, revelasse a beleza. Ela me acena e oferece um sorriso largo, como que se me esperasse retorno.
Antes que eu acenasse de volta alguém passou correndo através de mim. Era o menino. Era eu. Eu sou sombra. Ou eles são? E aquela menina?
"Eu já tava com saudade – falou enquanto apoiava as mãos da menina nas suas – Você não tem aparecido muito por aqui ultimamente."
"Papai não deixa eu sair. Diz ele que "é da escola pra casa, viu? "."
Era Otávia. A menina com quem me casei então. A menina com quem compartilhei meus cabelos brancos e que veio morar na mesma rua. É a mesma mulher que está usando os meu óculos, e qual agora está a porta agoniada comigo aqui fora:
- Homem de deus! Anda ligeiro de volta pra cá! Tá doido?
- Doido pra que teu pai não saiba que você tá aqui escondida comigo!