Além do samorteamém
Sagrada era a hora do terço. Acontecia depois da janta e em nada prejudicava à audiência do rádio - por coincidir com a insossa Hora do Brasil - ou à fazeção do dever de casa, por termos, por prudência, que observar a hora do quilo.
Papai sempre puxou. Primeiro, uma cadeira pra frente, na sala, ou na copa. E, em seguida, a reza. Uma vez introduzido naquele ritual, o petiz não o deixava mais. E acontecia geralmente por volta dos cinco, seis anos. Abaixo disso, podia-se zanzar entre os rezantes desde que observasse o obsequioso silêncio.
Papai era bamba nas orações de cor, subsidiárias ao terço em si, como ladainha, salve rainha, oração a São José, nas contemplações dos mistérios, nas jaculatórias e nas intenções finais daquela prece. A diferença mais marcante entre o nosso terço e o das tias vizinhas de cerca, era que nas intenções finais elas pediam pela alma do Getúlio, o pai dos pobres.
Acho que entendendo que o mesmo Getúlio era a mãe dos ricos, papai saltava essa dedicação.
E até no Ofício da Imaculada que se rezava só em tempos de turbulências atmosféricas, e que era a mais longa de todas, ele não precisava de livrinho.
Duma única feita, um elemento perturbador entrou nessa equação. Mana Bebel, pela lei do menor esforço, descobriu que ao cabo da Ave Maria, ou seja na Santa Maria, ao invés de se pronunciar todo o texto - que era bem monocórdio, ainda que dorido - bastava-lhe o arremate, que era "...samorte, amém".
Bons aprendizes, eu e Beu, pusemo-nos a segui-la. E a coisa ia indo bem, até o momento em que botamos ênfase em nosso coro.
Papai continuou o terço impassível. Até o amém que finalizava tudo. Ao se por de pé, já veio de chinela à mão. As lapadas foram distribuídas fime e uniformemente, sem danos, contudo, a não ser da ardência das nádegas e coxas.
A admoestação verbal, ministrada em meio às chineladas, foi mais econômica. Mas o suficiente para, dali pra frente, irmos sempre além do samorte amém.