Luna Nueva

LUNA NUEVA

Haviam passado a tarde de domingo aconchegados, trocando carícias.

A claridade do dia se foi. Na penumbra ouviram os últimos acordes de um concerto interpretado por flautas.

- Querida - ele disse, desprendendo-se de seus braços–devo ir à Matriz amanhã; como das outras vezes, pegarei um voo noturno.

- De novo?! - Ela se queixou– Esse mês já é a segunda viagem...

-Luna, querida, como superintendente desta Filial, não posso fugir às minhas responsabilidades.

- Compreendo - ela apenas murmurou, já sentindo o vazio da próxima ausência.

Eram felizes... Dedicados como companheiros, ardorosos como amantes, compartilhavam até mesmo os silêncios. As viagens feitas à Matriz, nesse último ano, tão frequentes, a entristeciam.

Na Sociedade Empresarial em que prestava serviços, o marido elevara seu status por suas qualidades de planejamento e liderança. Ela se orgulhava disso, embora esse reconhecimento não a isentasse da necessidade de senti-lo a seu lado, simples e inteiro.

Ela própria tinha uma vida repleta de interesses: trabalhos profissionais e voluntários, atividades Culturais, yoga, academia eram parte dos seus dias. Mas havia um momento quando ambos, esvaziados dos labores cotidianos, quedavam-se juntos, suspensos na quietude e no silêncio.Era então que suas almas comungavam, tocando-se com asas etéreas.

Luna celebrava essa intimidade, e a desejava sempre e ardentemente.

Ele foi ao quarto, organizar-se para a viagem.

Ela retomou a leitura de um livro, até ser interrompida pelo som de uma chamada no telefone celular do marido que ficara na sala.

Foi, então, ao quarto, levando o smartfone – Ney! - chamou, sem ser ouvida.

Sobre a cama estavam valise e peças de roupa. O marido, dentro do closet, naturalmente, escolhia o que mais levar. Deu dois passos naquela direção, para encontra-lo, quando ouviu que ele falava em voz baixa. Desconcertada, olhou o celular que tinha nas mãos; surpreendida que ele tivesse outro celular, ficou à escuta.

- Nosso voo sai às vinte horas; estaremos no aeroporto um pouco antes das sete, ele disse.

Houve silêncio e ela julgou que a conversa terminara.

Entretanto, após um instante, ouviu de novo a voz de Ney, nítida, embora, em tom baixo e contido:

-Eu te amo mais que nunca!!!

Luna sentiu-se desabar; custou manter equilíbrio e forças para abandonar o quarto e refugiar-se na sala. Devastada pela traição revelada de forma tão inesperada, não sabia como assimilar o inelutável e catastrófico conhecimento.

Abatida por tremores febris, enrolou-se numa manta, como para se defender da dor que a apunhalava.

O marido encontrou-a assim, exangue, intimamente derrotada.

Estranhando a palidez do seu rosto e o desamparo que ela demonstrava, Ney achegou-se, preocupado, fez perguntas, procurou abraça-la.

Luna lutou contra a mudez espasmódica que a dominava. Enovelou-se sob a proteção da delgada manta e suplicou num gemido:

- Por favor, Ney, não me toque... Tudo em mim dói... Deixe-me só.

Ele permaneceu por perto, apreensivo, tentando ser útil, sentindo, sem atinar com o motivo, que ela o alijava de si.

Finalmente Luna dominando os membros rígidos, ergueu-se do sofá e evitando fita-lo, encaminhou-se ao quarto.

Como ele a seguisse de perto, cheio de cuidados, pediu-lhe outra vez que a deixasse só. Tomaria um medicamento e iria dormir.

Remoendo a dor cruciante da revolta, padeceu uma longa noite de insônia, repelindo a proximidade dele e dos seus braços que buscavam acolhe-la e conforta-la.

Fingiu dormir, mantendo os olhos cerrados, na manhã seguinte, quando ele se levantou preparando-se para sair.

Entretanto, não pode evitar o confronto da despedida. Por instâncias dele prometeu procurar um médico e cuidar-se.

- Não se aproxime de mim, Ney - pediu- o que tenho pode ser contagioso.

Ele partiu, deixando-a entregue a seus sentidos exacerbados.

Sozinha pode enfim expandir seus pesares: dor e ira se misturavam ao pranto convulso. Da garganta contraída espumejava um suco, amargo, sufocante.

Interrogações enchiam-lhe a mente; que mau sortilégio fizera desmoronar suas certezas, suas garantias, sua felicidade?

Como, sete anos de comunhão, reciprocidade de sentimentos, companheirismo, paixão e tantas outras trocas, se houvessem transformado em ruinas?

Desligou o telefone. Chamadas e mensagens de Ney eram constantes. Retornou a elas por uma vez, tranquilizando-o com a explicação de estar naquele momento em consulta médica. Tão logo estaria recuperada. Seu mal um surto virótico sem maior importância declinaria com a medicação prescrita.

Esvaziada das lágrimas, invadiu-a a perplexidade de ver falhados os códigos em que se ancorara durante sete anos; estava à deriva, despedaçada pela dor e pela revolta.

Não tinha com quem discutir o assunto ou aconselhar-se. Seus pais e os sogros viviam distantes. Sua vida particular sempre fora resguardada; nunca dividira sua intimidade nem mesmo com amigos mais próximos. Não seria agora que abriria mão de suas defesas compartilhando seu constrangimento. Nunca lhe ocorrera necessidade de consultar mentores profissionais. Assim, apenas suas reflexões pessoais inspirariam suas próximas atitudes.

Jamais teria a serenidade de fingir ignorar o fato acontecido; perdoa-lo, era de todo impossível. Consequentemente seria conduzida ao confronto e seu resultado não seria a reconciliação. Mas não era ainda chegado o momento.

Ney... Não queria vê-lo. Desejava evitar sua presença. Enviou-lhe outra mensagem dizendo já se sentir bastante forte, e pronta a trabalhar no serviço voluntário de uma ONG, de onde retornaria quando terminasse o dia. Acreditou que isso o desestimularia a voltar em casa, para vê-la, antes da viagem.

Á custo ergueu-se do leito: com passos arrastados foi ao closet; tocou com dedos trêmulos a toalha úmida, com que ele se secara do banho matinal, impregnada do seu aroma. Seus olhos congestionados percorreram as gavetas que ele remexera fazendo escolhas. Automaticamente organizou os cabides, dobrou vestuários, reavivando dentro de si o sofrimento. Repercutiram em seus ouvidos as últimas palavras pronunciadas por ele ao telefone; num assomo de desespero ela os tapou com as mãos, como se as pudesse calar e fugiu.

Vagou desalentada pela casa silenciosa. Na sala, sobre a poltrona, o livro que estivera lendo, aberto na página marcada. Dispersos junto ao aparelho de som, CDS ouvidos no transcorrer do dia; restavam em pratos abandonados frutas, castanhas, bolinhos...Uma garrafa de vinho... Taças vazias.

A claridade do dia insinuava-se através das cortinas cerradas. Luna viu-se refletida no grande espelho. Sobressaltou-a sua imagem tresnoitada: olhos magoados, sem brilho, faces pálidas, cabelos revoltos.

Em outros espaços foi revendo o que havia expressado para os dois uma venturosa experiência. Livros nas estantes: obras literárias de sua preferência; outras de cunho técnico relacionadas ao trabalho de Ney; exercícios poéticos lidos a dois, temas por eles apreciados, discutidos. Quantas vezes liam juntos, horas a fio, recostados no mesmo sofá, tranquilos, aceitos um com o outro, até que o sono os vencesse.

Dispersos em prateleiras e mesinhas, estatuetas, peças artesanais, mimos, lembranças de viagens, álbuns de fotografias...

Objetos que até então se destacaram como ícones de uma perfeição vivenciada, transformavam-se agora em despojos amortalhados.

Exausta, foi deitar-se. A dor corria junto com seu sangue, por dentro de sua pele, cruel, pulsante, devastadora. Vencida pelo cansaço, cochilou; despertou lavada de suor, sedenta, febril.

Uma chuveirada fria restituiu-lhe um pouco de ânimo. As horas do dia se haviam adiantado. Atordoada voltou a caminhar pela casa golpeada por amargos pensamentos. Pôs em ordem a desarrumação da sala, jogou fora os restos, colocou na máquina de lavar, taças e pratos usados. Estremeceu pensando nos dias que estavam por vir, e como enfrenta-los...

Voltou a ligar o celular encontrando dezenas de mensagens e chamadas perdidas. Ignorou as que vinham de Ney. Fez ligações, desculpou-se por ausências a compromissos marcados para aquele dia. Refez sua agenda, tentando, com a meticulosidade desse ato, organizar-se, antes da tempestade que estava por vir.

Seu instinto a impulsionava a agir. Não se sentia capaz de aguardar os cinco longos dias da ausência do marido, remoendo a dor daquela ferida, para então enfrenta-lo e tomar atitudes.

No celular reviu os recados de Ney, atentando para suas expressões de preocupação e cuidado: “Não posso viajar sem falar com você... Quero a certeza de que está realmente bem...”, uma ideia desenhou-se em sua mente.

Porque não fazer-lhe uma surpresa, aparecendo de imprevisto antes da partida? Conhecia-o bem e aos seus hábitos de viajante contumaz: demorar-se no bar apreciando uma taça de vinho, antes da última chamada para o voo.

Lembrava-se de quando nas inúmeras vezes em que haviam viajado juntos, Ney, após degustar a derradeira taça de vinho, ao se conduzirem para o embarque, num gesto costumeiro, tomava-a carinhosamente pelos ombros ou pela cintura e assim abraçados caminhavam.

Decerto, naquela noite, acompanhado de “euteamomoaisquenunca”, não seriam diferentes as suas ações.

Porque não enfrenta-los nesse instante?

Que fazer naquele momento extremo? Que posturas deveria impor, que palavras pronunciar quando diante deles se colocasse?

Luna analisou a resolução que estava prestes a tomar. Seria aquele encorajamento o fruto da decepção e da revolta que a impulsionavam?

Sentia-se fraca, atropelada por pensamentos atabalhoados, insegura.

Como um pêndulo seu coração destroçado oscilava entre agir e entregar-se à lassidão.

Foi vencida pela consciência de não suportar nem mais um dia conviver com tal impostura. Deu os primeiros passos para a execução do plano: encheu a Jacuzzi, borrifou os sais de banho; mergulhou na água tépida, envolvendo-se no amplexo do líquido perfumado. Tentou esvaziar-se dos pensamentos, sentindo aos poucos relaxarem-se seus membros tensos.

No aeroporto, encontraria Ney e a amante. Na conjuntura conteria sua indignação, não exporia seus sentimentos; colocar-se-ia como que surpreendida com o inesperado, deixando na manifestação silenciosa da sua dor o desenlace.

Pensou no que vestir: seu traje seria discreto, mas com refinada elegância. Sabia bem como realçar seu porte e destacar-se perante os olhares.

Reviu no espelho seu rosto emaciado pelo sofrimento. Um pouco de maquiagem disfarçaria a tez pálida, os olhos intumescidos.

Porém, dela não se afastava a perplexidade. Que transtornos haveriam levado Ney ao atual comportamento? O que teria sido feito da cumplicidade de ambos: a exaltação diante da vida; a ousadia em usufruir as sutilezas da paixão; o êxtase das carícias e o sabor do amor compartilhado até a extenuação; e depois de tantas trocas prazerosas, quando saciados, ficava o deslumbramento; permaneciam silenciosos, agradecidos.

Obrigou-se a um pequeno repouso; não tinha apetite, mas sentindo-se fraca tentou comer um creamcraker, tomou uma água de coco. As horas avançavam. A decisão estava tomada, não iria desistir.

Vestida, calçada, maquiada, levemente perfumada, viu chegar o momento da partida. No último instante num ato de rebeldia tirou do dedo a aliança, símbolo da vivência da qual se despedia.

Retirou o carro da garagem; pôs-se a caminho no transito caótico do fim do dia.

Vencido o longo percurso até o aeroporto, na iminência de realizar seu intento, com crescente emoção, estugou os passos.

Viu-se engolfada pelo ruído e o movimento contínuo de pessoas; com o coração aos pulos, viu a necessidade de conferir se já se haviam dado as chamadas para partida do voo. Repentinamente seus sentidos falharam; sentiu a vista turva, num ápice de segundo, a vertigem tirou-lhe o chão.

Ao recuperar-se, notou que alguém que a conduzia nos braços; ainda confusa deparou com uns olhos mansos, cautelosos, fitando-a através de um par de lentes. Sofrera uma vertigem, fora socorrida e levada à sala de emergência do aeroporto. Um aparelho de aferir pressão fora ajustado no seu braço. Fraca e desamparada, Luna queria manter os olhos fechados, pois a luz a incomodava.

- Sente-se melhor? – perguntou o dono dos olhos mansos.

Ela moveu a cabeça afirmando, tentou mexer-se.

Gentilmente, ele pressionou-a no ombro.

- Mantenha-se deitada, por favor. Tem algum problema em ingerir açúcar?

-Não, - ela conseguiu falar, lutando com a sequidão da garganta.

Foi-lhe então oferecido um copo de água com açúcar. Ele a auxiliou a erguer-se; amparou-a, e, enquanto bebia, mantinha-a recostada no seu braço. Ela não coordenava bem os pensamentos, e entregou-se agradecida àquela presença que lhe inspirava confiança. Nos instantes em que conseguia manter os olhos abertos, encontrava fixos nela o mesmo olhar atento.

Recuperou-se finalmente da letargia. E, de chofre, lembrou-se de que viera surpreender o marido e a amante. Sofrera um mal estar súbito, fora socorrida, e de resto só sabia estar reconfortada com a assistência de um desconhecido.

- Que aconteceu comigo? – indagou, recuperando o domínio da voz.

- Sou médico, meu nome é Benjamim Vargas, ele apresentou-se. Observei quando você vinha quase correndo pelo corredor. Percebi quando seus passos falharam e perdeu o equilíbrio. Pude apenas segurá-la para que não caísse quando desfaleceu, e a trouxe para o socorro de urgência.

- Trabalha no serviço médico do aeroporto? – ela perguntou.

- Não... Acompanhava um amigo... E você, o que faz aqui, e como se chama?

- Luna Nueva... Vim para despedir-me de uma pessoa... Que horas são?

- Luna Nueva, repetiu – que estranho nome! São nove horas, ele continuou; do modo como corria, senhorita, estava atrasada para o que viera fazer, estou certo?

Ela aquiesceu em silêncio, dando-se conta de que seus planos não se haviam realizado; era hora de voltar á sua casa e conviver com seu universo devastado. Afastou-se repentinamente dele, tentando se por de pé. Benjamim Vargas auxiliou-a, pronto a sustenta-la se lhe faltasse o equilíbrio.

- Dê-me algumas respostas – ele pediu, de forma profissional. - Você sofreu uma queda de pressão e tinha hipoglicemia. Já sentiu outros desmaios, têm-se alimentado convenientemente?

- Nunca tive desmaios... Mas desde ontem não me alimento regularmente - Luna confessou.

- Terá que alimentar-se imediatamente. O copo de água com açúcar que tomou não foi o bastante. Sente-se forte para caminhar?

Isso dizendo, tomou-a pelo braço, conduziu-a á lanchonete mais próxima, onde pediu que lhe fossem servidos chocolate quente e bolachas de água e sal. Ela apreciou o alimento, sentindo-se grata às delicadezas daquele desconhecido, que nada sabia dela, do que viera fazer ali, dos seus planos fracassados... Por ora, Ney e “euteamomaisquenunca”, já iam longe, sem saber de nada.

Enquanto ela comia, ele a observava. Depois de um longo silêncio, perguntou como ela chegara ao aeroporto.

- Vim dirigindo meu carro, – Luna informou - e você, ela quis saber.

- Tomei um taxi. Sou neurocirurgião e participo de um congresso que está se realizando na Associação Médica. É a primeira vez que venho a esta capital.

Luna convidou-o para retornar com ela, no seu carro. Benjamim Vargas aceitou, comentando que a sugestão de voltarem juntos o tranquilizava. Sua opinião médica era que ela devia recolher-se ao leito para descansar, tão logo estivesse em casa, depois de alimentar-se com alguma coisa leve.

Embora Luna se sentisse refeita do mal estar recente, a trágica lembrança de seu drama voltou a obstina-la; para escapar dos pensamentos conflitantes, interessou-se em ouvir seu companheiro de viagem, perguntando-lhe sobre sua vida profissional; enquanto ele a detalhava, Luna procurava esquecer que Ney se distanciava, ignorando sua dor calada, os soluços contidos que lhe oprimiam o peito.

Não podendo escapar à curiosidade de Benjamim Vargas sobre ela, Luna resumiu as informações falando de seu desempenho no trabalho de orientadora profissional, de sua solidária participação em serviços voluntários.

Recordando-se do comentário que ele fizera sobre seu nome, contou sobre como ele fora escolhido. Nascida aos sete meses de gestação, tão pequenina e frágil, o temor dos pais era que não sobrevivesse. Uma enfermeira espanhola, que os acompanhava, na tentativa de dar-lhes ânimo, prognosticou, “la niña vivera, es luna nueva”.

Influenciado pela predição, o pai batizou-a Luna Nueva. Estendeu-se relatando fatos curiosos sobre o pai, sua influência, seus benéficos conselhos, evitando assim confidenciar mais sobre si mesma.

Luna desejou saber onde devia deixa-lo. Ele lhe deu o endereço do hotel onde se hospedava; cerrou os olhos e silenciou, enquanto ela buscava o itinerário para o hotel em meio ao trânsito confuso.

Luna observou-o no seu relaxamento momentâneo: aparentava ser mais jovem do que os trinta e cinco anos que dissera ter. Tinha o rosto bem escanhoado, os cabelos escuros e lisos, que usava num corte desfiado; as mãos, assim quietas, exibiam dedos longos com unhas curtas, bem tratadas (mãos de cirurgião, ela pensou). Ao mesmo tempo lembrou-se de que, na sua debilidade, estivera nos seus braços, apoiara a cabeça no seu ombro, encostara seu rosto exangue no tecido macio de sua jaqueta, respirara o odor amadeirado de seu perfume. Repentinamente sentiu uma incompreensível sensação de perda daquela intimidade. Quando seus sentidos e sua força haviam falhado tivera dele o apoio, e, até aquele momento, ainda contava com sua presença confortadora. Logo esse contato estaria rompido, quando cada um deles retomasse o próprio caminho. Sentiu um medo visceral da ameaçadora solidão, da tristeza e da dúvida que a esperavam a partir dali.

Avistou o hotel com sua fachada iluminada; dirigiu-se ao trecho de estacionamento onde carros manobravam.

Percebeu quando ele abriu os olhos.

- Cochilou um pouco?...

- Não,... Mantendo os olhos cerrados concentro-me melhor nos meus pensamentos.

- Chegamos ao fim da linha, ela brincou. Está entregue. Só tenho a agradecer seu socorro e a amável companhia durante o percurso.

- Desceram do carro para se despedirem

- Sente-se recuperada? Tem alguma dúvida em prosseguir sozinha?

- Claro, depois de seus cuidados, estou muito bem...

Ele tirou um cartão do bolso da jaqueta.

- Aqui tem meus celulares disse, entregando-o. Meu congresso termina na terça feira, ao meio dia. Telefone-me. Vamos nos encontrar; desejo lhe oferecer um jantar. Mal percorri a cidade, mas com seu auxílio encontraremos um bom restaurante. Dê-me o prazer da sua companhia e a oportunidade de conhecê-la melhor. Atraiu-a para um abraço; gentilmente, esperou que ela desse a partida no automóvel e se fosse.

Ela tomou o caminho de casa, surpreendida por um sentimento inexplicável.

Chegando, nem se lembrou da recomendação feita por Benjamim Vargas de que devia alimentar-se. A casa fechada absorvera o calor intenso que havia lá fora. Ligou no quarto o ar condicionado; despiu-se no escuro,esperando que o ar fresco circulasse, aplacando do seu corpo a perturbadora sensação que sentia. Jogou-se na cama, aturdida, acossada pela lembrança de Benjamim Vargas, do seu olhar atento, de seus braços confortadores, do odor levemente amadeirado que o cercava. Pegou o cartão de visita; acendeu o abajur colocando-o sob o foco da luz. Recordou o momento em que ele lhe fora oferecido e o convite que se seguira. Que intenções estariam ocultas naquele convite? Seriam apenas gentilezas, ou a manifestação ainda não expressa do desejo de ter com ela uma aventura?

Tomou o cartão entre os dedos, examinou-o; se ligasse para Benjamim Vargas, na terça feira como ele pedira, quais seriam as inferências daquele encontro?

O telefone tocou; era Ney. Não desejava ouvi-lo. O som da sua voz que já fizera seu coração se inundar de felicidade, agora lhe causava uma extrema mágoa, e as palavras lhe fugiram.

- Está me ouvindo Luna? Já me encontro no hotel, porque não retorna às minhas chamadas? Quero notícias... Recuperou-se? Como foi seu dia?

- Ouço perfeitamente, Ney, respondeu com esforço. Sinto-me muito bem, estou curada...

- Fico tranquilizado, então. De amanhã em diante seguirei as rotinas, trabalho e reuniões. Ligarei para você nos intervalos, e espero que esteja bem... Estarei de volta no domingo, ele disse.

(Luna transportou-se aos acontecimentos daquele princípio de noite: pronta a acarear o marido e a amante, fora acometida por uma vertigem e socorrida pela presença providencial de um desconhecido. E desse encontro às avessas deram-se transformações inexplicáveis. Diante dela o cartão com os telefones de Benjamim Vargas, era um desafio para uma tomada de atitudes, que, se aceito seria um divisor de águas em sua vida).

Domingo... (Domingo, Ney estará de volta, pensou). Era possível que no domingo houvessem caído todas as barreiras, e ela já transposto as fronteiras do inimaginável.

Assim, à chegada de Ney, poderia enfrenta-lo, corajosamente, de igual para igual.

Mas por enquanto seu coração gritava de revolta.

Estarei de volta no domingo, ele repetiu.

- Sim... Já o ouvi... Luna afirmou relutante.

Do outro lado houve um instante de silêncio, como se ele aguardasse algo comum entre os dois, que ela devia dizer, mas não dissera.

-... Eu te amo... Ney murmurou, finalmente.

Luna respirou fundo. E, num desabafo, escandindo vagarosamente palavra por palavra, pronunciou com firmeza:

- EU TE AMO MAIS QUE NUNCA! E desligou.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 06/11/2016
Código do texto: T5814765
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