SÁBADO DE ALELUIA

Continuação de SEXTA FEIRA

A lua cheia ainda flutuava no céu sem estrelas quando o médico e o comendador, sentados na varanda da casa, conversavam sobre a doença de Miguel. A febre cedera, mas o abatimento era visível.

- Tenho a impressão, meu caro comendador, que o mal de Miguel não é apenas um resfriado comum. Quando clarear, vou dar uma chegada à casa do Dr. Fonseca e pedir que ele venha examinar o pirralha.

- O que o senhor acha que ele tem?

- É cedo para afirmar. Preciso ouvir a opinião do colega que trabalha com pessoas tísicas.

- O senhor acredita que meu filho esteja com a peste branca?

- Os sintomas não são muito evidentes, mas o chiado no peito, a tosse seca, a respiração curta e principalmente a palidez me alertaram para essa possibilidade.

- Deus não há de permitir que o meu filho morra desse mal terrível.

- Eu ainda não tenho a certeza, mas caso se confirme, o senhor poderá mandá-lo para Gravatá de Bezerros. Com a mudança para clima mais frio, com o ar seco, com a alimentação adequada, ele sem dúvida reagirá bem.

Os galos cantaram anunciando o amanhecer e a escrava, enrolada no xale tecido com linha grossa de algodão, anunciou que o almoço estava servido na sala de jantar.

- Vamos doutor, o senhor nem dormiu nem comeu desde que chegamos ontem ao fim do dia.

- Não se preocupe meu caro comendador, estou apenas cumprindo o jejum tradicional.

E sem cerimônia, o doutor atacou a travessa da coalhada, o cuscuz, a bandeja com o queijo frito, comeu inhame com bastante manteiga, tudo isso acompanhado por várias xícaras de café com leite.

- Hoje não teremos pão. As padarias estão fechadas por causa da semana santa...

- Não seja por isso, comeremos dessas bolachas. São deliciosas.

E o doutor continuou comendo até se fartar. Logo depois, os dois homens foram a pé para a Rua Nova, para o encontro com o Dr. Fonseca.

Seguiram pela Rua da Aurora até a ponte da Boa Vista.

- Há uma coisa que gostaria de lhe falar doutor. É sobre os nossos filhos, isto é, minha filha, Maria do Rosário e o seu filho, Dr. Rodolfo.

- Vamos sentar aqui.

E sentados num dos bancos da ponte recém-reformada, os dois conversaram longamente sobre o amor nascido entre seus filhos e chegaram à conclusão de que não deveriam impedir a união deles.

- É bom que o senhor saiba, meu caro doutor, que a senhora dona Judite, minha mulher, não vê a união dos nossos filhos com bons olhos porque desde nascida, a minha filha Maria do Rosário, está prometida para casar-se com o filho de uma amiga dela. É um bom rapaz, mas por mimo em demasia da sua mãe, tornou-se uma pessoa intratável, grosseira, enfim mal educada, coisa que até o próprio pai, meu compadre Zé Pacheco o reconhece. Mas felizmente, a graça de deus se manifestou no amor surgido assim, num repente (e o comendador estalou os dedos, como era seu costume) no coração do nosso ilustre advogado.

- Eu acredito que Rodolfo com pouco tempo conquistará a simpatia da sogra, ele é falastrão, animado e, a meu ver, até certo ponto um sonhador, um inconsequente que não planeja a vida e o bem estar dele próprio e da família para possíveis dias de turbulência no futuro.

- Mas isso é próprio da idade, meu caro confrade. Com a maturidade, isso também se ajeitará.

- Eu perguntei a ele, ontem à noite, antes de entrarmos em sua casa o que é que ele tinha para oferecer? Se ele pensa em viver do trabalho de advocacia dessa gente que ele representa, a coisa vai mal, muito mal. Imagine o senhor, meu caro comendador, que ele recebe galinhas, porcos e perus como pagamento...

- Mas essa é também a moeda que o meu caro doutor recebe dos seus doentes e, que eu saiba, a fome nunca se hospedou na casa do senhor doutor Ataliba de Alencar.

Os dois homens riram bastante da situação e saíram andando...

Chegados à porta da casa do médico, já lá se encontravam várias pessoas para serem atendidas. O doutor se fez anunciar e foi imediatamente recebido pelo médico que prometeu que estaria na casa do Comendador ainda naquele dia.

Os dois voltaram para casa e retomando a conversa sobre o noivado dos filhos, ficou acertado que o Comendador iria falar com o presidente da província a fim de arranjar a nomeação do Dr. Rodolfo para a procuradoria da fazenda.

O presidente fora colega do comendador na escola de dona Cotinha e juntos, tinham levado muitos bolos de palmatória nas arguições de matemática e latim.

Quanto ao dote, o comendador Aurélio havia deixado, em testamento, quinhentos contos de réis para a neta. Era uma quantia que se bem administrada, daria para o casal montar a casa e viver sem preocupação até o fim da vida.

- Depois do casamento, a senhora Maria do Rosário será a dona da casa em que moramos. Como o senhor sabe, fiquei viúvo há três anos. A nossa casa é muito grande e os negros precisam das instruções de uma mulher de fibra para manter tudo em ordem e eu espero que a sua menina já esteja preparada para isso.

- Eu acredito que sim, que ela será capaz de tomar e de dar conta de tudo porque vem sendo treinada pela mãe, desde muito nova. Interessante essa coincidência, o sobrado em que o senhor doutor mora foi a residência dos bisavós da minha esposa. A rua se chama Rua do Crespo em homenagem ao velho que era muito influente na sociedade e de certa forma, a casa volta para uma Crespo legítima.

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O exame que o Dr. Fonseca fez no pequeno foi minucioso. Tudo foi observado. Mandou que ele tossisse, que escarrasse, e usando um estetoscópio de madeira torneada, mandou que ele respirasse fundo e dissesse trinta e três várias vezes.

Diferente dos outros médicos, que não davam ouvidos ao que as crianças falavam, o doutor mandou que todos saíssem do quarto e sentado na cama, fez um sem número de perguntas, contou e ouviu piadas, riram muito e conversaram como velhos amigos. Apesar do medo inicial, Miguel ficou completamente relaxado.

- Eu pensava que o senhor ia me dar injeção...

- Essa sua bunda chocha não tem carne nem para encher um pastel. Como é que eu iria aplicar injeção? Só se fosse no osso...

- E eu posso brincar na chuva? Posso soltar barcos de papel? Posso ficar descalço?

- Claro que sim. Mas não deve ficar com a roupa molhada no corpo o dia todo. Quando terminar de brincar, enxugue a cabeça e vista uma roupa seca.

- Se o senhor não disser a meu pai que eu posso fazer isso, ele não vai deixar...

- Não se preocupe, eu aviso a ele. (e os dois riram em sinal de cumplicidade)

E a consulta estava terminada.

Já na sala o doutor fez as recomendações:

- O quarto deve ser todo lavado com vinagre, inclusive os móveis. Retirem as cortinas, os tapetes, troquem o colchão e travesseiros por novos. A porta e a janela devem ficar abertas dia e noite. Em vez de lampião de querosene, quando precisar de luz, usem uma vela de espermacete e Miguel deve tomar banho frio, todos os dias, antes de deitar, seja inverno ou verão.

Enquanto falava, o doutor escreveu no receituário, com a caligrafia bem caprichada, os remédios que seriam aplicados.

-Cataplasma de hortelã da folha miúda e capim santo. Aplicar no peito e nas costas por três dias, à noite, antes de deitar.

-Xarope de hortelã da folha graúda, uma colher de sopa, pela manhã ao acordar, depois do jantar e antes de dormir.

-Purgante de óleo de rícino, uma colher de sopa. Repetir a dose por três semanas seguidas.

-Óleo de Fígado de Bacalhau. Uma colher de sopa pela manhã.

Depois de ler atentamente a receita, o Comendador, com visível espanto perguntou ao médico.

- Óleo de fígado de bacalhau! Onde se encontra esse medicamento Doutor?

- Na farmácia Conceição. Eles acabaram de receber uma remessa vinda de Londres. É um medicamento muito utilizado no norte da Europa. Reforce a alimentação de Miguel com caldo de mocotó, fígado de boi, mel de engenho e ele logo-logo estará bom.

- Quer dizer que meu filho não está com a peste branca, doutor?

- Não, não creio. Pelos sintomas e pelo ambiente do quarto, acredito que ele tem alergia. É um mal novo, que está afetando as pessoas que moram em casas como a sua, com pouca ventilação nos quartos, com cortinas e tapetes. Parte do tratamento é deixar a criança brincar ao ar livre, descalço e sem camisa, mesmo que esteja chovendo... (e o doutor piscou o olho direito para Miguel que estava de pé, abraçado ao pai)

- Quanto lhe devo doutor?

- A mim o senhor não deve nada. Foi um prazer atender ao meu amiguinho, mas se o senhor quiser e achar conveniente, faça uma doação ao Dispensário contra tuberculose. Eles precisam alimentar aquela gente para que o tratamento faça efeito.

- Sem dúvida que farei isso. Melhor ainda, serei contribuinte mensal para o Dispensário e vou falar aos meus amigos para fazê-lo também.

- Será de grande ajuda porque nada podemos esperar dos poderes públicos...

Finda a visita o Doutor Fonseca se retirou e o Dr. Ataliba se despediu com a garantia de que se encontrariam na igreja.

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A cerimônia transcorreu monótona até que, exatamente a meia noite, o padre entoou em cantochão por três vezes...

ALE E E E E E LU U U IA AAA AAA A!

Os sinos repicaram festivos, retiraram-se os panos roxos para que as imagens fossem novamente expostas iluminadas pelos candelabros cuja luz também iluminou a alegria na face dos fiéis.

Rodolfo, disfarçadamente, segurou com suavidade a mão trêmula e delicada de Maria do Rosário...

GLOSSÁRIO:

Cantochão = canto gregoriano

Capim santo = capim limão (Cymbopogon citratus)

Cataplasma = papa medicamentosa feita de farinhas, polpas ou pó de raízes e folhas que se aplica sobre alguma parte do corpo dolorida ou inflamada.

Dr. Fonseca – Joaquim de Aquino Fonseca, médico pneumologista que em 1849 presidiu o Conselho Geral de Salubridade da Província de Pernambuco.

Gravatá de Bezerros – Povoado do Agreste Pernambucano (atual Gravatá) se notabilizou no tratamento da tuberculose por seu clima de montanha frio e seco.

Hortelã da folha graúda = Coleus amboinicus

Hortelã da folha miúda = Mentha villosa

Óleo de rícino = óleo extraído das sementes da mamona (Ricinus communis) usado como vermífugo

Peste branca = tuberculose

Rua do Crespo = atual Rua Nova

Tísico = tuberculoso