CANTEIRO REVIRADO

CANTEIRO REVIRADO

BY Zilda Alckmin

Maria Rita estava ali, remexendo a terra, enquanto na sua memória remexia também lembranças ainda recentes, de momentos compartilhados como coadjuvante na preparação do canteiro de temperinhos em um projeto de horta, enquanto bebericava uma cerveja acompanhada de petiscos e belisquetes. Sons de risos e uma pseuda cumplicidade formavam par entre elas enquanto as mudas eram cuidadosamente transplantadas do vaso ao canteiro em definitivo.

Agora, sozinha, Maria Rita remexia os canteiros ressequidos e áridos cheio de ervas daninhas que tomavam conta do espaço onde outrora havia vida germinando.

Seu coração estava igual aos canteiros: secos e sem nada que pudesse animar a possibilidade de que dali pudesse brotar alguma coisa viva, ainda que o lugar estivesse sem ervas daninhas. Não tinha vontade remexer na terra, sentia que se o fizesse era como reabrir uma ferida que estava tentando ficar igual a terra. Não queria recordar as palavras bonitas que se foram com o vento, proferidas em momentos onde o álcool já imperava dominador, como acontece comumemte com as pessoas fracas e sem coragem, que aproveita momentos como este para povoar com palavras levianas, das quais desconhece o efeito colateral que arrasa com uma vida, ou quando destrói a esperança projetada na cabeça de uma alma sonhadora. Ela continuava ali, de copo na mão, sentada no chão, olhar pedido no canteiro vendo um filme passar por sua memória como se fosse uma novela sem cenas do próximo capítulo. Parecia ouvir a conversa mole já dominada pelo efeito do álcool usando um linguagem não apropriada para quem carregava o orgulho da sua formação:

- Meu... porque gosto tanto de conversar com você? Nunca pensei que fosse tão agradável falar com contigo sobre tantos assuntos. Você é muito legal.

Era assim que Anita falava quando já estava "alta". Tecia mil elogios à Maria Rita, uma visível admiração que só se desconstruia quando o assunto era política.

Ela, Maria Rita, debruçada sobre o canteiro enquanto remexia a terra, gargalhava e respondia que isso era natural de quem estudava, lia muito e tinha dentro de si uma alma de artista.

-É que nós os artistas, temos um olhar mais sensível a tudo que nos rodeia. E acreditamos que se existe uma coisa que a mediocridade humana nunca haverá de destruir, é com esta capacidade incrível que temos de sempre ver coisas belas mesmo que seja através de ruínas.

Anita, uma psicóloga com ideias socialistas em teorias e uma pseuda postura de esquerdista, mantinha a bunda no conforto de um emprego público que certamente não era sua maior paixão. Isso estava estampado no rosto pelo vinco marcado na testa, tão característico e singular. Nunca se referia ao trabalho com paixão, com aquele tesão de quem faz o que gosta, mas que por um bom salário se torturava todos os dias encarcerada enquando mantinha o traseiro colado na cadeira atendendo gente fedida dependente de benesses sociais, enquanto aguardava ansiosamente a hora da libertação para correr e bater o ponto eletrônico de saída. O conforto que desconforta com uma segurança também era capaz de assegurar ao longo dos anos, uma enorme solidão controlada com antidepressivos e infindáveis sessões de terapia sem nenhuma felicidade.

O que havia acontecido? De verdade mesmo, ela não sabia. Só sabia que Anita se foi, ou melhor, não veio mais, ou quem sabe talvez nunca tenha existido de fato. Morava numa cidade vizinha, terminou a relação basicamente por telefone. Alegou que não conseguiu se apaixonar. Declarou que não queria nada sério que queria mesmo era se divertir. Era isso, de repente Maria Rita tinha se transformado num parque de diversões e assim como as que crianças enjoam do brinquedo e correm a procura de um novo.

Ficou em silêncio pensando sobre isso. Não deixou que as lágrimas denunciassem o que acontecia em seu coração.

Também não pensou em cortar os pulsos por causa disso. Não valia a pena.

Nem assumiu para si, uma culpa que não havia, porém, mais uma vez investiu errado. Apostou suas fichas em um cavalo com tres patas e estava fadado a não ganhar a corrida.

O sentimento de amor exige uma leveza de alma e um olhar com o coração. Ela, não media esforços para buscar o que havia de melhor no outro sem deixar de dar o melhor que há em si, mesmo que este outro seja um ser sem alma. Esta era sua filosofia de vida, seus princípios de crença. Não se pode mudar a natureza do escorpião.

Maria Rita era um poço de sensibilidade, alma inquieta de artista em busca constante de respostas diante da infindáveis perguntas que a vida apresenta

Naquele momento de reflexão em que via sua recente história de amor se desfazer com um castelo no ar, também olhava para o canteiro revirado como se olhasse para dentro de si mesma.

Era hora de bater em retirada, dar um passo à trás, retroceder um pouco para ganhar impulso e prosseguir na sua caminhada. Esse recuo era vital, voltar para a concha e transformar em pérolas as suas feridas, apostando no tempo como o grande senhor dos anéis.

Haverá certamente uma nova estação, e a chuva há de molhar novamente a terra seca. A crise hídrica certamente não haveria de afetar seu coração

Devagar, bem devagar sorveu o ultimo gole do copo, suspirou fundo, se levantou, ergueu as mãos postas para o céu e fez uma reverência olhando para o Alto:

- Muito obrigada, Pai...Este canteiro vai florescer novamente!

Bateu no peito e saiu.

Um leve sorriso estampou no seu rosto, estava serena e em paz com a certeza de que a vida é da orelha para frente.

O que passou, passou. Ficou lá atrás. Morreu.

Assim como morre o dia, a noite, e ás vezes um sonho também, não todos. Somente aquele no qual fizera uma aposta mais alta. Só a esperança permanece viva. E ao contrário do dizem, não é a última que morre, mas sim a primeira que nasce. E a fé. É ela que mantém uma pessoa de pé quando tudo já ruiu por terra e vem as rasteiras. De alguma, forma quando tudo que foi projetado deu errado, é Deus abrindo um novo caminho para que outras coisas dêem certo. E o melhor castigo que existe para alguém que partiu seu coração sem o mínimo de escrúpulo, é desejar que tenha uma vida longa, tempo suficiente para o acerto de contas das ações praticadas durante esse longo estágio que se chama vida.

E a vida continua. Independente de qualquer coisa, ela continua...

Zilda Alckmin
Enviado por Zilda Alckmin em 14/02/2016
Código do texto: T5543005
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