SEXTA FEIRA DA PAIXÃO

(continuação de Quinta Feira)

Miguel não saiu da cama.

A febre não baixou mesmo com os banhos de ervas, os chás, os escalda-pés e cobertores.

O pijama e os lençóis da cama foram trocados todas as vezes que estiveram molhados de suor, mas a febre se manteve durante toda a noite.

A mãe e a escrava se mantiveram de vigília, tentando fazer a febre ceder.

Perto da hora do almoço, Josefa trouxe um mingau.

- Sinhozim carece di cumê...

- Não quero Bá. Tá com gosto ruim...

- É mingau de cachorro qui sinhôsim gosta. Bá fêi bem ralim... Coma pulamô dideusi, nem qui xeje um tiquim...

Por muita insistência da velha escrava, que tinha sido mãe de criação do seu pai e que sempre arranjava uma desculpa para livrá-lo das palmadas, Miguel tomou algumas colheradas do mingau, mas passados poucos instantes, vomitou tudo o quanto havia comido.

- Senhor meu marido, mande um moleque chamar o doutor para ver Miguel. Ele está com muita febre e acabou de vomitar o pouco do mingau que tomou.

- Se a senhora quiser, minha mãe, eu irei com Sebastião buscar o doutor. Eu sei onde é a casa dele.

- Não senhora Maria do Rosário. Lugar de mulher é dentro de casa. Você já é uma mulher feita, não é para estar batendo pernas pelas ruas, acompanhada por um negro e muito menos para ir à casa do Doutor. Eu não falei ainda, por causa da preocupação com a doença de Miguel, mas não esqueci o papel que o filho do doutor deixou no banco da igreja e que a senhora guardou no livro de orações.

- Que história é essa Maria do Rosário? (perguntou o Comendador e a meia voz, a moça respondeu).

- É uma declaração de amor do Doutor Rodolfo, pedindo minha autorização para ele falar com o senhor, meu pai.

- E por que você não mostrou à sua mãe ou a mim?

- Eu só li ontem depois das orações da noite e o senhor já estava dormindo e a minha mãe estava atarefada com Miguel, por isso deixei para falar hoje pela manhã, depois que vovó tivesse acordada...

- Fez muito bem, minha filha. E qual é a resposta que devo dar ao Doutor.

- Se o senhor e minha mãe consentirem, sim, eu quero ter compromisso com o doutor Rodolfo.

- E a senhora esqueceu que está prometida ao filho da minha amiga Filomena?

- Mas eu gosto de Miltinho, como se gosta de um parente, não tenho amor por ele minha mãe, e acho que nunca terei...

- Ele é um Sampaio de Alencar legítimo, rico, filho de fazendeiro. O que falta nele para lhe encantar?

- Educação, minha mãe. Miltinho é mal educado, grosseiro, preguiçoso e fede como esses negros que trabalham no pesado.

O comendador soltou estrepitosa gargalhada para espanto das três mulheres e, entre gargalhadas, engasgos e acessos de tosse, disse:

- É exatamente isso que o meu compadre Zé Pacheco pensa do filho, que ele é um inútil e eu não gostaria de tê-lo como genro. Ainda bem que você pensa assim, minha filha.

- Mas com que cara eu ficarei diante de minha comadre Filomena? Disse Maria Judith com visível mal estar.

- Diga a verdade, senhora minha mulher. A verdade pode ser dura, mas não ofende como a mentira.

- Trocar um bom partido, rico, nascido em família tradicional, de origem respeitada por todos, por um qualquer... Realmente não me conformo minha filha.

- O doutor Rodolfo é também de origem conhecida e reconhecida como muito importante por todos. (retrucou o Comendador) Pode não ser rico, mas é muito bem remediado, é advogado recém-formado e com banca já instalada, é filho do melhor médico que tem na cidade e também é Alencar.

- Mas não é um Alencar tradicional, legítimo...

- É legítimo sim, senhora minha mulher. O avô dele, que também era médico, veio de Portugal, onde estão fincadas as raízes do sobrenome. (e olhando o relógio de algibeira, complementou) São quase duas da tarde, daqui a pouco começa a procissão do Senhor Morto e o Dr. Ataliba vai carregar o andor, não sei se seria conveniente chamá-lo agora na hora da janta. Melhor deixar para depois da procissão.

- Eu estou muito preocupada com Miguel, ele é muito magrinho, só vive resfriado e ainda tem essa tosse seca.

- Deus há de proteger meu neto de todo mal. (Disse, fazendo o sinal da cruz, a dona Vicentina, que havia permanecido calada durante toda a conversa).

- Eu não irei à igreja. Vou ficar em casa com Miguel. Josefa já está velha e ele é desobediente, inzoneiro.

- Eu vou agora para São Gonçalo, quando o Dr. Ataliba chegar eu falarei com ele. O que é que a senhora, minha mãe, acha desse amor repentino do Dr. Rodolfo por Maria do Rosário?

- Ele me parece um bom moço. Muito bem educado. me tratou com toda distinção e se é para a felicidade de minha neta, eu dou a minha bênção.

- Posso ir com o senhor, meu pai? Eu já estou pronta.

- Não. Vosmecê vai com a minha mãe. Já aluguei uma charrete para mais tarde. Diga a Sebastião que vá às Florentinas buscar um tílburi para mim enquanto termino de me aprontar.

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A cerimônia de adoração da cruz, toda falada em latim, transcorreu monótona como sempre e as pessoas, a maioria sem entender nada do que estava sendo dito, rezando o ofício de Nossa Senhora, quase num sussurro. Finda a cerimônia, enquanto os irmãos da ordem de São Gonçalo se prepararam para a procissão, foi o momento em que o Comendador pôde falar com o médico sobre a situação do filho pequeno.

- Quando terminar a procissão eu irei até a sua casa meu irmão, ver como está o menino.

Rodolfo entregou o tocheiro a outro irmão e só com a fita da ordem sobre o paletó, seguiu a procissão junto à Maria do Rosário que permanecia, automaticamente e sem dizer uma palavra sequer, debulhando as contas do rosário.

Dona Vicentina, pela dificuldade de andar, principalmente naquelas ruas de calçamento irregular, ficou na igreja, rezando mais um rosário, junto com outras beatas tão velhas quanto ela.

- A senhora já tem uma resposta para mim?

Perguntou Rodolfo num momento em que considerou que ninguém estava olhando.

- Sim. Eu quero que o senhor fale com meu pai.

Um enorme sorriso surgiu no rosto do rapaz, completamente impróprio para a ocasião, mas a felicidade era tanta que ele sentiu vontade de gritar.

- Assim que terminar a procissão, vou falar com meu pai para ele pedir essa permissão em meu nome.

Ao chegarem de volta à igreja, os irmãos organizaram os turnos da vigília que permaneceria diante do Santo Sepulcro até que chegasse a hora da Aleluia.

De volta para a casa do Comendador, na charrete, cabiam quatro pessoas. Dona Vicentina, Maria do Rosário, o Comendador Antônio e o Dr. Ataliba.

Rodolfo teve que ficar de fora.

Ele queria ir também.

Queria acompanhar a sua amada até a sua casa.

Queria ter falado com o pai, mas não houve oportunidade.

Ele estava tão impaciente que, apesar de ter vindo a pé de São Gonçalo até a Rua do Canal, chegou bem antes do que a carruagem.

- Meu filho, o que é que você está fazendo aqui? Perguntou o Dr. Ataliba quando viu o filho postado na frente do portão da casa.

- Preciso falar com o senhor agora. meu pai, antes que o senhor entre na casa do Comendador.

Maria do Rosário e a avó passaram rapidamente para dentro e o Comendador, parado junto ao grande portão de madeira, observou o Dr. Rodolfo se afastar para os lados da Rua da Aurora, segurando o braço do pai e lhe falando num sussurro.

- Por favor, meu pai, pelo amor de deus, peça autorização ao Comendador para eu casar-me com a filha dele, a senhora dona Maria do Rosário. Era um fio de voz em tom de súplica.

Admirado com aquela manifestação repentina, o Dr. Ataliba pôs-se de frente para o filho, impedindo-lhe os passos.

- Que história é essa? De onde você conhece a moça? Ela sabe dessa sua paixão?

- Conheci a senhora dona Maria do Rosário na igreja, junto com a família. Fiquei completamente apaixonado, me declarei por mensagem e ela aceitou. Por favor, meu pai, não me negue essa ventura.

- Primeiro eu vou ver como está o filho do Comendador, porque foi para isso que eu vim aqui. Depois, teremos que conversar. Casar é um passo definitivo, que exige responsabilidade para o resto da vida. O que você espera da vida junto com essa moça, o que tem para oferecer?

Desolado, Rodolfo permaneceu de pé, olhando o pai desaparecer atrás do portão da casa do comendador e, seguindo a rua, foi ver as baronesas que o Capibaribe, seguindo a maré vazante, estava levando, lentamente, para o mar...

GLOSSÁRIO

Hora do almoço = Nessa época as refeições conhecidas como almoço, janta e ceia, ocorriam com intervalos de mais ou menos seis horas, principalmente nas cidades, assim sendo o almoço acontecia as 8h, a janta (ou jantar) as 14h e a ceia a partir das 19h. (Por causa disso, o planeta Vênus que se posta ao poente nesse horário, é também chamado de Estrela Papa-Ceia) O desjejum era refeição leve, feito com mingau de farinha de mandioca ou de milho, cuscuz de milho verde, batata doce, inhame, leite e café (raramente pão). Em algumas residências mais abastadas, tomava-se chá mate (conhecido como congonha, no Sudeste Brasileiro), em xícaras de porcelana chinesa, comercializada pelos ingleses.

Mingau da cachorro = pirão de farinha de mandioca, temperado com alho, sal e pimenta do reino.

Rua do Canal = atual Rua do Riachuelo

Tilburi = carro de duas rodas e dois assentos, com capota e sem boleia, puxado por um só animal.

(continua em SÁBADO DE ALELUIA)