Vendedores e Viajantes

Naquela manhã, véspera de feriado de carnaval, os senhores Jonas e Amadeu viajavam sentados na parte dianteira do ônibus integrante da frota do transporte público da capital. Conseguiram um lugarzinho, bem atrás da motorista. E sentadinhos, olhavam pela janela enquanto o ônibus “rolava” lentamente pela avenida em direção ao terminal rodoviário.

E do lado de fora daquele quadrado de alumínio, uma multidão caminhavam a pé, como se estivessem em sintonia. Levavam bagagens nas mãos, esperança no olhar e alegria escondida no coração, esperando o momento para deslanchar na folia.

Quem estava dentro do coletivo e observavam o corre-corre, tinham a impressão que a larga calçada era mão única para pedestre. E quem vinha na contramão de quem caminhava rumo ao terminal, não recebiam multas, mas eram intimidados por olhares nervosos. Não existia placa informando a direção e nem a velocidade permitida, como nas estradas, mas pela força do bom senso, o correto ali naquele trecho, onde pernas apressadas se desentendiam com malas e bolsas, era exclusivamente seguir rumo a rodoviária.

E todo aquele trajeto na calçada era acompanhado com afinco pelos dois senhores. Descontraídos, começaram a trocar algumas palavras sobre a movimentação lá fora:

- Quanta gente!

- È verdade! Estão animados! Diferentemente dos vendedores nas portas das inúmeras lojas. Veja só a expressão de tristeza e desencanto de cada um deles.

Sr. Amadeu conferiu o comentário do Sr. Jonas. Não tinha percebido. E depois daquela “nota do dia” passou a prestar atenção. Teve tempo suficiente porque o trânsito não fluía.

E ele olhava vagarosamente. Calado. Conferia rosto por rosto e viu que uma leve decepção decorava as faces desacreditadas. Sr. Amadeu refletiu mais um pouco e fez seus comentários com o Sr. Jonas:

- Você tem razão. Alegria para quem vai e uma angústia pacífica para quem fica. Tem vontade de ir. Passear. Porém não podem. Por isso estão tristes.

Os dois senhores continuavam com os olhos fixos para a calçada repleta de viajantes e para os vendedores nas portas das lojas vazias. E os profissionais apenas acompanhavam a multidão que caminhavam apressados. Não olhavam para eles e muito menos para as mercadorias. Nem as placas de ofertas eram notadas.

Sr. Jonas, em estado de êxtase, separou o corpo atlético e bem cuidado do banco e esticou-o, assustando o amigo. Estalou os dedos com tamanha força que chamou a atenção dos passageiros que disputavam cada centímetro do espaço no lotação. Empolgado, concluiu que o problema dos vendedores eram outros. E disse com palavras trabalhadas na mente saudável e sensível:

- Descobri o motivo! Não é isto que estamos pensando. O fato de que não possam viajar. É pior! E grave!

Sr. Amadeu estremeceu. Ainda se recuperava do susto que levou do Sr. Jonas com aquela levantada ágil e brusca. Colocou a mão no peito e suspirou fundo. Curioso, aguardou vir a tona a descoberta do amigo ao lado, que continuava de pé, sendo observado pelas dezenas de desconhecidos. Com o rosto moldado pela seriedade, Sr. Jonas compartilhou sua teoria:

- É simples. Eles olham, veem muita gente passando em frente as lojas e não vendem nada. Dias ruins para os negócios. Duro. Sem comissão. O salário que deveria ser bom e não é, virá pior. Magro. Dá para imaginar a nuvem de tédio rondando aquelas vidas.

A conversa do Sr. Jonas com Sr. Amadeu ganhou repercussão dentro do ônibus. Usuários, a maioria jovens e adolescentes, começaram a olhar para fora. Os comentários dos dois amigos pareciam borbulhar na cabeça de cada um dos passageiros, deixando-os inquietos. Foi como um convite para que refletissem e começassem a emitir suas opiniões sobre o mundo fora do ônibus. E assim foi feito.

Primeiro foram tímidos murmurinhos. Passavam um para outro. Outro para um. Depois dois. Três. Quatro. E as vozes começaram a se misturar numa disputa acirrada pelo espaço no ar:

“Olha lá aquele de blusa azul encostado na porta. Parece desmotivado.”

“Veja aquela de camisa amarela. Tá cochilando no sofá. Deitou e se esbanjou bem ao lado daquela que deve ser a gerente. E ela nem sem importou.”

“O jovem da banca está debruçado sobre as revistas. Hoje quase ninguém quer saber de notícia.”

“Veja lá naquela loja verde. Alguns tiraram o uniforme. Também pudera. O patrão deve ter liberado. È uma ocasião especial. Ou então estão disfarçados. Vestidos com roupas normais para fingir que são clientes. Deve ser uma estratégia.”

“Há há há! Esperta é a dona do restaurante que colocou a cadeira na porta, um pote de moedas e o pequeno freezer com água mineral.”

“Pessoal, os vendedores tinham propósitos para dia, como todos nós agora. E quando as coisas não vão bem, o semblante muda. É natural dentro do ciclo da existência humana.”

“Eles devem detestar feriado de carnaval.”

“Verdade! Aqueles profissionais gostam mesmo é do dia dos pais, mães, crianças e principalmente o Natal. Tentam nos laçar a todo custo.”

E a todo instante surgiam comentários. Ajudavam a minimizar o tédio e a reduzir a ansiedade. Espantar o marasmo e passar o tempo, já que o trânsito não fluía.

Um dos jovens passageiros, impaciente e emburrado, quase vencido pela morosidade do trânsito, percebeu que a discussão perdia forças. Reascendeu-a, comentando com voz firme:

“É um sofrimento mútuo! Não percebem? Enquanto sofremos com trânsito congestionado eles sofrem com a falta de vendas.”

“Você tem razão. É relevante. Devem fazer comentários a nosso respeito. Sentem dó de nós. Considerando-nos pobres coitados. Tanto tempo preso no trânsito.”

“É mesmo. Basta olhar para o ônibus ao lado. Vejam só a expressão de cansaço daqueles passageiros vizinhos.”

“È!”

“Concordo!”

“Não é bem assim não! Os vendedores estão preocupados é com a falta de venda. Não com o trânsito congestionado.”

“Isso é verdade!”

E começaram novamente as reflexões ambíguas. Discussão generalizada. Alguns contra e outros à favor. E toda aquela confusão democrática nasceu das observações de Sr. Jonas e Sr. Amadeu, que acompanhavam calados o desenrolar da história. Conversaram baixinho e concluíram que as observações através das sensações visuais, acompanhadas de sentimentos e emoções, teve sentido. Foram capazes de criar vários conceitos distintos para situações aparentemente simples e irrelevantes.

Com o sorriso estampado no rosto, Sr. Jonas comentou com o amigo:

- Lembra quando éramos jovens? Fazíamos o mesmo trajeto a pé. Vínhamos lá do início da avenida. Nunca reparamos a expressão de melancolia dos vendedores em períodos como este.

Após o relato, os dois baixaram a cabeça. Parecia estar arrependidos. Mas eram jovens. Mais euforia e menos reflexão. Mais festa e menos palmas.

A maioria dos passageiros, já esgotados do trânsito e daquelas reflexões, perceberam a cena dos dois e ficaram comovidos.

Sr. Amadeu disse ao amigo que tinha uma sugestão para amenizar o descaso prematuro do passado. Sr. Jonas mostrou-se disposto a ouvir, consentindo com a cabeça:

- Vamos desembarcar pelo menos três quarteirões antes do terminal rodoviário e fazer o que poderíamos ter feito a seis décadas atrás. Vamos distrair os vendedores.

- Vamos! – gritou Sr. Jonas, empolgado. E Continuou – as nossas bagagens estão um pouco pesadas, mas não será empecilho para esta boa ação. Ainda temos tempo. E as malas têm rodinhas, apesar dos buracos nas calçadas que mais parecem armadilhas para pedestres.

Sr. Amadeu pediu que o motorista abrisse a porta e ele atendeu. Avisou ao profissional que tentariam levar um pouco de esperança aos vendedores. Perguntar preços, condições de pagamentos, horário de funcionamento e talvez até faria algumas encomendas. Ressaltou que os vendedores esquecidos precisavam de atenção para distender os lábios, evitando assim que enferrujassem.

E eles desembarcaram felizes. E ficaram mais contentes quando perceberam que todos os usuários daquele ônibus fizeram o mesmo. Desceram e começaram a entrar nas lojas e levar um pouco de esperança aos vendedores.

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 17/12/2015
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