Gordinho
Na estrada, meio que perdido, meio que fugindinho, meio que sapequinha corria um gordinho. Havia recém chovido, as poças refletiam as nuvens espessas e o céu insistente. Ele, na estrada, brincava de pulá-las.
Saiu de casa para brincar. Não aguentava mais ficar presos nos dias chuvas, já fazia dois dias que ela caía sem pensar. Antes de sair pela estrada, rumo ao rio, pois queria ver se atingira o nível da ponte, antes mesmo da chuva parar, ou de com suas gordurinhas pular os pequenos lagos, pensava, em casa.
Sim, era criança danada, danada a pensar. Pensava dia e noite, já que não ia a escola, não ia à roça, não ia ao galinheiro, não ia ao chiqueiro, se punha a pensar, isto antes de se por a caminhar.
Danado com os pensamentos, queria saber porque na sua casa só tinha homens. O avó, mal cheiroso, mistura do tabaco e cachaça, nos cantos da varanda, ou em cima dos pangarés. Vô quieto, jurava que o vô pensava, e pensava, de tão quieto, pensava por não ter opção. Nunca perguntou nada a ele, velho emburrado, casco nos atos e no próprio pé.
Pai, homem que só trabalhava, cheirava suor, tabaco e de vez e nunca uma pinga. Gostava do pai, até falava um pouco, perguntava da escola. Todo dia perguntava das férias, se ia longe ou só logo acabaria, credo, parece que quer que acabe.
Pula uma, pula outra. Ixi, tem um bem grande lá, será que conseguirá. Não, caiu de bunda, pobre gordinho.
Antes da chuva, danado por pensar e danado nos pensamentos, pensou porque na casa só havia homem. E pior, o pai queria que logo as férias passassem.
Terceiro homem, irmão mais velho. Irmão cheiroso, cheirava desodorante de catálogo. Como sabia disso? Viu as professoras esfregarem o pulso num livro cheio de fotos de perfume, e danado como só, descobriu o cheiro do irmão e de cara o que é catálogo.
Ficou encantado com a palavra catálogo. Acreditou piamente que catálogo era a maior palavra do dicionário, depois de dicionário, claro:
- José dos Josés, diga a classe, qual a maior palavra que conhece?
- Catálogo!
Todos riram, não sabia se riram do sobrenome, do nome, da palavra que disse ou da calça rasgadinha.
Já molhado, não quer nem saber se vai cair na poça novamente, pula agora as maiores, mas sem hesito vitorioso.
O irmão cheirava catálogo, ou o que tinha lá, menos quando tirava as botinas, daí vinha o chulé. Danado como só, sabia que chulé era coco da bactéria, ou seria de fungos?
Uma vez pediu a professora para mostra-lhe a cara do fungo, encasquetou que tinha a cara deste bicho, disse até na roda dos colegas:
- Zé dos Zés, se fosse um bicho, que bicho se é?
- Sou um fungo, até tenho cara de fungo.
Todos riram, não sabia se do nome e sobrenome, da resposta ou se da bota que mostrava o dedão.
Mas por que só homem? Pensava antes da chuva e depois de desistir que tinha cara de fungo. Tadinho, não conhecia a mãe, nem a avó. Durante a chuva, pensava nelas mesmo sem saber como era.
E o rio? Transbordou? Chegou até a ponte? E se já diminuiu? Quer ver apim deitado. Adorava olhar como o mato deitava depois do rio cheio, mas lá, queria saber se ele atingiu a ponte.
Danado e sabido, já tinha ouvido falar de pontes que tinham caído por causa da força da correnteza, mas a dele, não, o rio sempre quase chegava, mas não chegava. Hoje, depois de tanta água do céu, chegou.
Mas por que o avô é sozinho? Por que o pai é sozinho? Por que o mano é sozinho? Será que eu sou sozinho? Deve ser por causa do cheiro deles.
Já perto de rio, ainda gordinho, mesmo de tanto caminhar, percebe que o rio não chegou, mas estava perto. Olha as águas marrons, algumas folhas, alguns galhos e rio rumo abaixo.
Seu pai lhe disse que não era para ficar na ponte em dia depois de chuva. Disse que era perigoso, eita menino danado que nunca acaba as férias! Mas ele nem lembrava, ou quem sabe nem se dava conta de que não lembrava.
Olha as nuvens, olha o céu. Olha o rio, tudo isto em cima da perigosa ponte, já abalada pela força da correnteza. Tem uma ideia, quer por a mão da água para saber se é tão fria quanto a chuva, já que era água de chuva.
Deita na ponte, mais um pouco, mais um pouco o dedo encosta... eita rio que nunca sobe. Mais um pouco, só mais um pouco...
A ponte começa a romper, e o garoto sem avó, sem mãe, sem roupa nova, sem calçado bom, desce rumo ao rio forte.
Já prestes a cair, ouve um grito e algo puxando sua camisetinha surrada. Assustado ouve uma voz delicada e firme ao mesmo tempo:
- José, o que faz aqui? Vem vamos descer! É perigoso e por pouco não cai.
Era sua avó que de tanto agoniada pela bebedeira do marido tinha ido embora, agora depois de cansada e amargurada sem o veio resolvo voltar? Ou seria a mãe que de doença no coração foi ao médico, ainda quando bebê, mas que nunca voltou? Quem sabe é a namorada do mano, que resolveu dar uma força no rancho? Não, não e não.
É a professora, loira, cabelos cacheados, olhos verdes e de salto.
- Vem menino, eu te acompanho pela estrada.
- Tia, consegue pular as poças com esse sapato?
- As poças...