DEZ MINUTOS
Aquele domingo, 12 de outubro, foi especial. Emoções e surpresas invadiram o coração das crianças e adultos. Ainda no sábado, Lorena, ansiosa para abrir o embrulho com o seu nome, atazanou a vida dos pais durante todo o dia. Eles relutavam em não ceder a pressão infantil criada pela garota. Não tinham a intenção de atender o desejo da filha única.
E ela insistia. Questionava os pais. Colocava as mãozinhas na cintura. Balançava todo o corpo franzino. Sem sucesso. Os pais não fizeram sua vontade como de costume.
Seu pai, Sr. Moisés, até que tentou, mas Lúcia manteve a ordem. Sua opinião prevalecia. Não atendeu a súplica do fruto que desabrochou de seu ventre.
Sr. Moisés, para não contrariar a filha, insistia! Tentou convencer sua esposa:
- Lúcia, meu amor, minha primavera permanente, vamos entregar o presente a Lô. Um dia a mais ou um dia a menos não vai...
- Não e não! Fui clara? Não se fala mais nisso. É amanhã junto com os filhos da Vera e da Núbia. Vão chegar cedo. Não vamos quebrar a tradição.
Diante da negativa, Sr. Moisés desistiu. Lúcia estava certa. Reuniam-se todo dia 12 de outubro para entregar os presentes às crianças. Lúcia e sua irmã Vera herdaram a tradição da avó. Núbia, irmã de Moisés, gostou da ideia e passou a acompanhá-los.
E no domingo bem cedinho, Lorena foi acordada pela mãe. Sonolenta, a garotinha pediu mais 10 minutos. Após aquele tempo solicitado, iria levantar, tomar um banho e se preparar para receber as tias e os primos. Lúcia, de imediato, concordou.
Passados 5 minutos, Lúcia retornou ao quarto da filha. Ela ainda permanecia deitada. Questionada, esclareceu:
- Mamãe, por favor, espere mais um pouco. Preciso dormir alguns instantes. Só 10 minutos. Prometo que será rápido.
- Mas meu anjo, já estão quase todos lá em baixo. Sabe quem falta? Você! Ontem estava ansiosa para ganhar o seu presente. Ficou com raiva? Perdeu o desejo?
Lorena ergueu o corpo na cama e sentou-se. Com simpatia, sorriu para a mãe e respondeu:
- Não mamãe. De forma alguma. Jamais. Respeito sua opinião. Fiquei curiosa. Um pouquinho chateada. Mas não tem nada a ver com esta minha missão.
- Missão? O que está aprontando desta vez?
- Nada demais. Depois explico. Agora preciso de 10 minutinhos.
Lúcia coçou a cabeça. Pensou. Não concordou em dar o prazo solicitado.
- Não minha filha. Levante e vamos lá. Agora! Não me faça perder a paciência numa data tão especial. Deixe de teimosia.
Lorena uniu as mãos e ergueu-as na altura dos lábios. Encostou na boca e com a voz baixinha, quase inaudível, implorou para que a mãe desse a ela um tempo. A mãe balançou a cabeça com sinal de negativo. Logo depois balançou o dedo indicador de um lado para o outro.
A garota precisava do tempo. Sabia que apesar da rigorosidade da mãe em algumas questões, era uma pessoa compreensível. A única solução seria revelar parte de seu plano. E assim fez:
- Mamãe é porque tive um sonho maravilhoso. Quase perfeito. Faltou um detalhe muito importante. Prometo que vou sonhar bem rápido.
Lúcia conhecia os momentos de inspirações da filha. Alguns deles costumavam ser inusitados. Preocupada com a imaginação de Lorena, chegou a comentar com a pediatra. Foi tranquilizada ao saber que era um fato normal para crianças com idades de sete anos.
Lúcia começou a perder a paciência. Logo propôs um acordo:
- Lorena, entendo sua situação. Mas lá em baixo tem crianças desesperadas para ganhar os presentes. Está sendo injusta. Vamos descer, você e os outros vão curtir os presentes e depois pode voltar para o seu quarto e sonhar os tais 10 minutos.
- Mas mamãe preciso dormir agora. Senão fica tarde. Pelo menos 10 minutos. – Lorena franziu a testinha e começou a contar nos dedos. Logo concluiu seu raciocínio puro, sensato e otimista – só 10 minutos. É o tempo suficiente.
Para acelerar o processo de ebulição do sistema nervoso de Lúcia e consequentemente, o esgotamento da sua paciência, sua irmã Vera bateu na porta do quarto e começou a apressá-la:
- Vamos Lúcia. Agilize! Não temos o dia todo. São crianças. Tem pressa e querem brincar.
- Já estamos indo Vera. Só 10... Alias, só um instante.
Lúcia olhou para a filha com seriedade. Lorena continuava com a expressão calma. Estava determinada. Ficaram em silêncio por 20 segundos. E pelo jeito se estenderia, não fosse a abertura da porta e a entrada de Moisés, acompanhado de Vera e Núbia. O pai logo manifestou:
- Meu amor o que está acontecendo? Por que esta demora?
Lúcia olhou-o e disse com a voz firme:
- Temos um problema Moisés. A Lorena não quer descer agora. Pediu que esperemos ela dormir mais 10 minutos.
- Mas já se passaram quase 1 hora que estão enrolando.
- Não exagere Vera. Não tem nem 10 minutos.
- Não defenda essa menina Núbia. Senão continuará mimada. Veja só, ela faz o que bem entende. É filha única, mas isso não lhe dá direito de querer impor suas regras e vontades. Se fosse minha filha eu...
- Se fosse Vera! Falou certo! É a minha baixotinha! Tem minha confiança. Certamente tem suas razões. Vamos dar a ela a chance de explicar.
Lorena sorriu timidamente. Sentiu-se protegida pelo pai e agradeceu. Aliviada, quando iniciaria suas explicações foi interrompida por uma manifestação popular infantil que soltavam palavras de ordem:
“Queremos nosso presente!”
“Queremos nosso presente!”
“Queremos nosso presente!”
As crianças uniram-se para buscar seus ideais. Ter o direito de abrir os presentes. Conversaram no 1ª andar da casa e decidiram tomar nota sobre o que acontecia no andar de cima. Recordaram o quanto somaram esforços no intuito de agradarem aos responsáveis e serem bem recompensados naquele dia 12 de outubro.
O quarto de Lorena ficou cheio. E as crianças continuavam com os gritos de “queremos nosso presente”. Aquela ação planejada arrancou sorrisos dos adultos.
Lorena encarou aquela interrupção como justa e necessária. Porém tinha os seus ideais. Não podia abrir mão. Já estava difícil. As horas se passavam. A esperança em dar sequência em seus sonhos se distanciava.
Em meio aquela confusão, a garota fez uma análise visual detalhada do ambiente. Percorreu com os olhos semiabertos toda a extensão do quarto. Percebeu que ninguém olhava para ela. Estavam distraídos. Sua tia Vera se acomodou numa pequena poltrona. Simulava uma sequência de soluços ao se espantar com os preços dos brinquedos à mostra num encarte publicitário dos dias das crianças. Seus pais conversavam com a tia Núbia assuntos irrelevantes. As crianças, já menos exaltadas, tomadas pela calma e curiosidade, se divertiam. Mexiam nos brinquedos e debruçavam na estante de livros infantis. Vasculhavam tudo no quarto.
Lorena concentrou-se. Com sabedoria e maestria, lentamente ajeitou o corpo na cama. Cobriu a cabeça e fechou os olhos no intuito de dormir os seus tão complicados 10 minutos.
Não teve jeito. Vera percebeu sua intenção e delatou-a:
- Ela quer dormir de novo! Não deixem!
Uma das crianças desceu da estante de livros e agiu rápido. Puxou a coberta colorida de Lorena.
Sr. Moisés pediu calma e silêncio. Propôs uma solução para pôr fim aquele dilema:
- Vamos resolver isto agora. Minha filha, sei que sonho é uma coisa pessoal e até mesmo intransferível. Mas precisa nos contar para tentarmos ajudá-la. Por favor, revele-o pausadamente.
Lorena concordou com a cabeça. Estava disposta a compartilhar os seus sonhos. Respirou fundo e seguiu a sugestão do pai:
- Há mais de uma semana, sonho com a distribuição de presentes para crianças carentes. Entreguei vários. Vi muitos sorrisos, satisfação e alegria. Porém faltou os meninos que moram nos casebres depois do rio. Quando tentava atravessar fui acordada pela mamãe. Só queria voltar a dormir, sonhar e terminar minha missão.
Lorena baixou a cabeça e seus olhos claros se encheram de lágrimas. Um silêncio tomou conta de todos no quarto. Pareciam refletir nas palavras da garota. Aqueles tão desejados 10 minutos, causador de toda aquela confusão, realmente eram por uma boa causa.
Lúcia, sem esconder a emoção, quebrou o silêncio e amenizou o arrependimento de todos que estavam ali:
- Tenho uma ideia fantástica. Acho que vão concordar. Vamos descer, abrir os presentes e depois compraremos alguns brinquedos. E antes do almoço levaremos até as crianças do casebre depois do rio.
Lorena alegrou-se e começou a pular na cama. E seu contentamento se espalhou entre adultos e crianças. A menina dos cachos de ouro abraçou a mãe e agradeceu.
Vera abriu o sorriso e pediu desculpas a Lorena. Abraçou-a e a parabenizou pela preocupação com outros meninos. Sr. Moisés, Núbia e as crianças fizeram o mesmo.
Depois dos esclarecimentos desceram as escadas. Distribuíram os presentes e partiram para a realização dos sonhos de Lorena.
Lúcia sugeriu que a boa ação, a partir daquele dia, faria parte da tradição da família. Todos concordaram.