OS FULANOS
— Newton estava errado. É evidente que dois corpos podem sim, ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo, ora bolas! — Essa talvez fosse a opinião de quem tivesse a oportunidade de conhecer aquele casal que vivia grudado noite e dia dormindo sempre na mesma cama de solteiro, usando a mesma toalha de banho, escova de dente, sabonete, repartindo sempre a última bolacha do pacote ou andando na rua em passo tão sincronizado e tão próximos um do outro, a ponto de as suas sombras se darem o desfrute de revezamento durante aqueles maravilhosos passeios matinais. Eram conhecidos como os fulanos.
O fato é que Fulaninho não apenas completava Fulaninha; ele simplesmente a transbordava. Fulaninha? Fulaninha, idem. A propósito, como não parecia haver sentimentos dissidentes naquela união, por uma questão de praticidade, com o tempo o idem passou a funcionar como termo recorrente: — Fulaninha, te amo pra dedeu! — Idem, Fulaninho; Fulaninho, daria a minha vida por ti. — Idem, Fulaninha; — Fulaninho... — Idem; — Fulaninha... — Idem. E evoluiu, ou, melhor dizendo, o vernáculo entre os dois tornou-se finalmente obsoleto. Agora, era apenas idem. Idem pra cá, idem pra lá... Bastava uma expressão facial, combinada com o idem e pronto, instauravam-se colóquios transcendentais que varavam madrugadas apocalípticas.
Mas se voltarmos um pouco no tempo, iremos perceber que o início desse romance foi, no mínimo, curioso: Fulaninho tinha ido a uma funerária encomendar um caixão para casal, antigo desejo dos seus pais caso falecessem ao mesmo tempo. Pois isso, de fato, aconteceu: os velhos foram vítimas fatais de um brutal acidente de carro e tiveram suas mortes consideradas simultâneas. Fulaninha era a dona da funerária e se ofereceu para, junto com Fulaninho, testar o espaço interno de um caixão King Size nos fundos da loja. Não costumo falar de obviedades; limito-me apenas a dizer que ali mesmo rolou.
Os pais de Fulaninho tinham algum dinheiro no banco, mas principalmente deixaram como herança para seu único filho um enigmático patrimônio: toneladas e mais toneladas de seda Colomy — aquele papelzinho branco para enrolar cigarro de palha —, armazenados em um grande galpão do subúrbio. Assim que conheceu Fulaninha, Fulaninho não vacilou, vendeu toda a seda como sucata e aplicou o dinheiro na bolsa. Passaram a viver do rendimento de ações ordinárias e de caixões vendidos eventualmente. Aos poucos, por conta da necessidade cada vez maior que sentiam de estarem sempre juntos, foram se isolando das outras pessoas. Inicialmente, do pessoal do prédio onde moravam, depois dos amigos e, por último, da família, a tal ponto que os seus nomes foram esquecidos e passaram então a ser lembrados apenas como “os fulanos”.
Um dia, ainda no auge daquela paixão, bastaram duas simples trocas de olhar, combinadas com um único idem, para resolverem fechar a funerária e aplicar o dinheiro em uma conta conjunta de poupança —, era tempo demais desperdiçado ficar quase uma semana inteira com a loja aberta sem, entretanto, ninguém morrer, concluíram —; em seguida, desistiram também da bolsa. Com receio da inflação que exorbitava os juros e desvalorizava a moeda nacional, converteram as ações em dólares que foram literalmente estocados debaixo do colchão.
Mas pelo visto não tinham tanta intimidade com as finanças como aparentavam ter como amantes, pois o dinheiro do banco acabou em pouco tempo. Semanalmente e logo no início da manhã, os fulanos eram vistos a pé, indo em direção a uma casa de câmbio no centro da cidade para trocar parte dos poucos dólares do colchão. Andavam na rua em passo tão sincronizado e tão próximos um do outro, a ponto de se pensar que as suas sombras se dariam o desfrute de revezamento durante aquela jornada penosa de quinze quilômetros. Porém, um observador mais atento poderia perceber o seguinte: Fulaninha é quem precisava ficar bem próxima de Fulaninho, pois fazia as vezes de muleta deste que sofria de lombalgia.
A situação começou a apertar tanto, que chegaram a ter que vender vários móveis da casa, inclusive o colchão de casal, que foi substituído por um usado de solteiro. Na crise, dividiram, ainda, a mesma toalha de banho, o mesmo sabonete, escova de dente, além de, em algumas vezes, a última e única bolacha do pacote. Aos poucos, Fulaninho foi pedindo para ficar prostrado na cama, por não mais conseguir andar até a casa de câmbio, pois sentia fortes dores nas costas e pernas. Fulaninha compreendeu, passou a ir sozinha e, repare, passou a voltar mais tarde, esperando a carona de volta de um tal de John Joe lá da casa de câmbio, moço gentil, bastante gentil. Gentilíssimo.