Ponto de luz
Ele era um lampião no fim do século que se iniciara desde o instante em que ali o implantaram, desprezível como qualquer outra coisa. Morria com sua luz falha, produzindo um som agonizante como se fosse a sufocante despedida. Era um som também falho, irritante e inconveniente. Mas pela primeira vez, agora em sua morte, era dada aos transeuntes a percepção de que naquela rua havia um lampião. E na próxima passagem por este mesmo lugar, quando não mais houvesse a luminosidade dourada sobre a calçada, os olhos cegos se perceberiam de que ali houvera outrora um ponto de luz.
No entanto, hoje ele morria e assim haveria de ser... Não se acostumava, não cedia à própria partida. Eu fiquei ali, de prontidão, como se lhe desse ânimo para que continuasse a resistir. Em ambos, era a esperança pelo fim sereno de que a morte viesse chegar noutra hora. Ouvia aquele sussurro, espécie de voz abstrata e desumana chamando atenção de todos que nem mesmo lhe retribuiam com gratidão os tropeços evitados e a guiança da visão noturna. E ele ali, mesmo humilhado, não media seus esforços. Era sua sina. Simplesmente. Relutava, mas não por si, pois melhor seria descansar e apagar - se eternamente. Todavia, era sua responsabilidade ser a luz para os pedestres, independente do reconhecimento de que ali estava, sem a retribuição pela luz que era doada para nunca mais... era a ajuda no caminho das pessoas, silenciosa. Na sua discrição, apenas os céus testemunhavam tal benevolência. E isso era o bastante.
Fracassando crescentemente, sabíamos do fim cada vez mais próximo. Por vezes tentei me convencer do descanso para ele da partida... sua dormência seria a merecida recompensa após tantos anos de trabalho naquele parque. Pensava no labor diário de se acender sem poder vacilar, na maneira como se punha uniforme e disciplinado todas as noites. Sobretudo, em quantas pessoas jamais caíram sob sua iluminação, em como fora cansativo evitar tantos males e afastar os mal feitores daquele parque, pois debaixo do lampião nenhuma atrocidade era capaz de ocorrer. No entanto, eu não me prendia à idéia de seu incansável zelo por todos nós, pelo merecimento que era sua chegada hora. Eu o impedia e alimentava sua permanência, porque egoistamente, eu não saberia caminhar sem a sua luz...
Como seria andar sozinha entre as folhagens, perdida e dispersa num caminho vazio? Eu era dependente... Queria aquele braço, era escrava de sua firmeza. E meus olhos sem a cintilação daquele brilho, estavam à mercê dos passos incertos, sob o comando do mundo... e eu não saberia viver no mundo sem um ponto de luz.
Em certo instante, o som perdurou insistente e forte, envolto por uma rouquidão. Fiquei ouvindo - o pensando ser a força brutal retomada, e o parque todo deserto se fez ouvinte daquela resistência. Então, repentinamente se calou. Apagou -se uma primeira vez, depois se acendeu com uma luz natural que me pareceu tão sutil quanto a luz do dia. Permaneceu renovado, como uma luz jovem e singela. Me pareceu ser infinita... mas subitamente começou a se apagar bem devagarzinho... Assim, calmamente, como se chorasse tímida... como uma criança que vai pegando no sono. A luz do lampião se apagara eternamente.
O parque foi tomado por um silêncio muito mais ensurdecedor do que o suplício de segundos atrás. De longe, outros lampiões continuavam seus trabalhos, pois não poderiam parar. Que seria do parque? Embora triste, não segui o ímpeto de me entregar à revolta por uma luz que se apagara. Eu sabia que um caminho escuro acabaria por se clarear durante o dia. O desafio seria nas noites acostumar - me com a abstração dos sentidos, do tato sobre o solo firme e as trincheiras. E tudo o que restou após essa partida, foi o sorriso de minha alma ao ouvir um casal que passava diante do lampião apagado. Era a lembrança que revivia a saudade límpida de um rastro do que já foi. "Que falta faz aquela luz que brilhava por aqui".