LEMBRANÇAS DO PÁDUA

Quando Ernesto pediu a Patrícia que se sentasse ao seu lado para que juntos elaborassem a lista dos convidados da comemoração das bodas de prata do seu casamento, experimentou um misto de surpresa e decepção ao perceber que já existia uma relação pronta e, pior: que a mesma não contemplava um nome sequer dos antigos companheiros de faculdade.

— Pô, Mô, que é isso, só tem família e amigas suas aí!

— Não, Ernesto. Tem também o síndico e a sua atual mulher, a dona Elvira do 702, o seu fisioterapeuta...

— Mas... e os nossos companheiros da faculdade, o pessoal do DA, do Partidão, hã, hein?!

— Que companheiros, que Partidão, Ernesto, meu rapaz?! — Sem levantar a cabeça, Patrícia ensaiou um leve tom de deboche e continuou multiplicando a quantidade de doces e salgados pelo número de convidados.

— Mas, Mô...

— Ernesto, o que é que você acha: devo aumentar a quantidade de empadas de camarão? Sei, não, viu, parece que, depois da bariátrica, a sua tia lá da ilha tem é aumentado o apetite...

Ainda preso a um viés cultural extinto, Ernesto não via como aquilo podia ter acontecido. Fazia apenas um ano que tinham retornado dos Estados Unidos após um longo período de 25 anos em que ele, sempre caretão, mas formado em Belas Artes, levara na bagagem apenas um brilho no olhar e um monte de camisetas de malha, estampadas com imagens do Che, do Bob Marley, dos Beatles, do Peter Tosh... Ela, formada em Análise de Sistemas e com um MBA a tiracolo, foi direto para uma empresa do Vale do Silício, onde aprendeu a transformar areia em dólar. Ganharam algum dinheiro, é verdade, conviveram com outras culturas, mas, ou a Patrícia agora estava completamente desmemoriada, ou não queria lembrar mais daqueles companheiros da resistência. Isso ele não conseguia compreender.

— ...Mas... então... você lembra do Pádua... lembra não?!

— Não!

— Do Pádua, Mô, do Pádua, você não lembra do Pádua?! Mô, deixa, então, eu te ajudar a lembrar: o Pádua...

— Não, Ernesto... já sei: encomendando os quibes com a dona Filomena aqui do bairro fica mais em conta...

— Já que você não lembra do Pádua, não quer saber da sua história, do Gilfrancisco, então, Mô...?!

— Não!

— Não?! E do Ademar... do... do Gustavinho. Aquele que vomitou na bandeira do Brasil e nós achamos o máximo! Lembra, Mô?

— Não, Ernesto, não lembro!

— Nem do Gustavinho, lembra! Pô, mô! Lembra, então, do Albano, o xiita da turma, aquele que só comia comida macrobiótica, hein, Mô, hein?

(...)

— Talvez, então, a Laurinha, a Hildete... o Archibaldo... nada?!

— Nada, Ernesto meu... oh, meu Deus! Falta ainda decidir alguns ajustes do buffet e a festa já é no sábado... — Era uma tarde de quarta — feira e então Patrícia decidiu que teriam que ir imediatamente à loja que ficava no shopping do bairro para acertar os detalhes finais.

Enquanto ia ouvindo as dicas do buffet sobre quais copos, pratos e guardanapos usar, Patrícia custou a perceber que do lado de fora da loja Ernesto acenava insistentemente, chamando-a para lhe mostrar algo. Finalmente, virando o olhar vagamente para aquela direção, notou o desespero do marido. Contrariada e sem nada entender, pediu, então, licença por um instante à dona da loja, e foi ao seu encontro.

Mal Patrícia se aproximou, Ernesto foi logo perguntando se ela lembrava quem era aquele senhor do outro lado do corredor. Imediatamente, e com o mesmo tom de deboche das outras vezes, ela falou entre dentes:

— Aquele? Ah, Ernesto, lembro, não. Olha aqui, não vê que eu tenho coisa mais importante para fazer! — E foi dando-lhe as costas, quando então Ernesto falou que era a Mônica, a da Suíça! — Patrícia empalideceu. Ernesto continuou:

— Veja só, lembra não, Mô?! Mô, aquele senhor era a Mônica! Lembra da Mônica, Mô? A que foi para a Suíça logo após a queda do muro de Berlim e que voltou mais ou menos uns treze anos depois de se casar com uma cristã ortodoxa que vendia pamonha em frente à embaixada brasileira em Berna. Lembrou agora, Mô? Vem, vou lhe apresentar a ele, o Pádua.

— Não, Ernesto, meu rapaz! — Patrícia estava visivelmente perturbada, mas Ernesto sequer percebeu.

— Não, por que, Mô, hein?! Hã?!

— Porque não é razoável, Ernesto, meu rapaz; vamos aproveitar que ele não está olhando agora para voltar para casa; já compramos o suficiente para a nossa festa.

Mas o Pádua estava olhando todo o tempo; então, ele veio e, mesmo percebendo a cara de constrangimento da Patrícia, resolveu dar uma alfinetada:

— Olá, “Casal 20. ” E virando-se para Patrícia: — Vale do Silício, hein, quem diria, senhora Patrícia, parabéns! ... — e foi deixando entrelinhas daquele passado psicodélico desconhecido do Ernesto:

— Minha heroína... quanto veneno da lata! ... Pra lá de Marrakesh, hein! E os banhos de cachoeira! ...

Aos poucos, Ernesto foi boiando naquelas abordagens do Pádua, pois continuava sem entender, afinal, as suas lembranças que, segundo ele, deveriam ser as mesmas da Patrícia, se restringiam àquele período da faculdade e...

— Mô, quanto tempo mesmo ficamos separados enquanto você fazia aquele MBA em Estocolmo?

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 17/08/2015
Reeditado em 15/06/2016
Código do texto: T5349645
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