Desencontro
Eu balançava as pernas, sentada no trem. Aqueles sapatos marrons me remetiam várias lembranças. Me faziam lembrar dos meus primeiros sapatos. O rosto maravilhado de mamãe ao calçá - los em meus magros pés. De fato eram muito grandes para mim. Porém, o semblante humilde e realizado simplesmente por poder me comprar um par de sapatos, superava os mínimos detalhes.
Observava esse semblante parado ali ao meu lado, na plataforma da estação, através da janela. Otimista, como sempre. Uns olhos que reluziam, mas não me enganavam. Mamãe estava triste. E uma certeza absurda, avassaladora, me recorria no peito. Era a certeza de que assim como eu, revivia os momentos ora sequenciados ora desconexos, como num filme que confunde o espectador. Eu queria lhe dizer para que ignorasse isso, embora nem mesmo eu conseguisse... mas e se não fosse nada daquilo? E se com essa atitude incalculável lhe despertasse lágrimas caladas? O melhor era silenciar e somente me despedir.
Eu muito lhe queria dizer. O quanto era importante. Coisas de sempre, previsíveis. Queria lembrar todos os momentos, só para que notasse como sou eternamente grata. Como quando eu crescesse haveria de mudar o mundo em seu nome. O mundo que ela tanto quisera mudar para quando eu chegasse. Algumas coisas são impossíveis... Queria ainda, lembrar do ponto zero, o primeiro passo. A primeira fotografia, seus pés no canto da foto como se esperasse de prontidão meu próximo tombo. O triste enterro de meu cachorrinho, quando com cinco anos de idade me explicou sobre algo que não compreendia muito bem, mas naquele momento, revivendo os acontecimentos, me perseguia os pensamentos sem motivos. "Ninguém nunca morre ". Os tantos dentes de leite que me tirava, sempre consolando meu infante medo. "É só uma pontadinha de nada, vai passar". As tantas vezes em que de súbito me enrolava toda na toalha de banho, me apertando os ombros enquanto eu batia freneticamente os dentes de frio. Queria lhe pedir para que não se esquecesse disso... para que lesse minhas cartinhas de escola por todas as noites. Bobagem. Isso certamente só lhe traria tristezas desnecessárias. Portanto, calei - me ao olhar seu fingido sorriso. E retribui por inúmeras vezes outro sorriso fingido. E as lágrimas que eu engolia se transformavam em brilho nos olhos. Era essa a imagem que deveria permanecer...
Em certo instante, era chegado o momento de partir. "Não dá mesmo para ficar? ". Eu olhava os sapatos, a mala aos meus pés. Sentia o beijo que há pouco mamãe me havia dado. Tudo tão familiar. Tudo tão acostumado... A maleta com roupinhas dobradas ao seu estilo. Os cachos em meus cabelos que não saberia reproduzir sozinha. Haveria de aprender. E aquela frase, ali, martelando sem querer ir embora. Ninguém nunca morre. E o trem saiu de mansinho... sem nada dizermos. Até que em certo segundo, voltei os olhos para trás. E ela, sem mais tristezas, olhos esperançosos nos meus, disse num suave sorriso : mande - me notícias desse novo mundo. Consenti. E parti tranquila, já com saudades e uma nova promessa a ser cumprida...