FOTOGRAFIA DE FAMÍLIA

Sabe aquelas fotografias antigas onde invariavelmente os homens estão vestidos com paletó azul celeste e as mulheres com vestidos estampados e com os cabelos amarrados num coque atrás da cabeça?

Pois bem, eu vi uma coleção dessas fotografias com mais de sessenta exemplares.

Foi assim.

Se existe alma, eu tenho alma cigana porque periodicamente, aconteça o que acontecer, eu tenho que fazer uma viagem, nem que seja para um daqueles locais que, de tão esquecidos, até o tempo se esqueceu de passar.

E foi num desses locais que, logo na entrada da pousada estava estampado o cartaz:

- VISITE NOSSO MUSEU ICONOGRÁFICO –

Praça da Matriz, s/nº Centro.

Pela indicação do endereço dá para você avaliar a biboca que era o local, mas além da alma cigana eu também tenho dentro de mim, um bicho carpinteiro, curioso como todos os diabos e depois do almoço, lá fui eu conhecer o museu.

Cidade de interior é outra coisa, tudo muito bem cuidado, calçadas varridas, mato aparado, canteiros floridos na praça, um ou outro cachorro vadio dormindo sob a sombra das árvores, uma mistura de cheiros de comidas de milho, café torrado, carne seca assada na brasa...

O som lânguido do carro de bois, bem longe nas estradas, zumbido de mangangá pousando de flor em flor, com a luz do sol se insinuando pelas frestas das folhas das árvores...

Não foi difícil encontrar o museu.

Era um casarão, desses com seis ou oito janelas que se abrem para a varanda com piso de mosaico e com guardas de metal fundido. Escadinha semicircular no lado esquerdo e três daquelas portas com mais de três metros de altura, com gradinha rendada lá em cima, que dava entrada para o salão.

REABRIREMOS AS 14 HORAS

Informava a placa de madeira entalhada pendurada na maçaneta da porta.

Eu teria que esperar pelo menos uma hora para ver o acervo do museu.

Sentei num dos bancos da praça e fiquei observando dois moleques de rua jogando futebol com uma garrafa pet tão suja quanto eles.

É incrível como o brasileiro gosta de futebol e como demonstra desde a mais tenra idade as habilidades necessárias para se tornar um grande jogador...

Saída não sei de onde, estava em minha frente uma mulher baixinha, sorridente vestida com tailleur azul marinho, sapatos pretos de bico quadrado e salto no melhor estilo dos generais nazistas.

- Eu sou Maria Justa, a encarregada do museu.

- Que bom vê-la. Pensei que ia demorar mais tempo do que a placa indica para eu poder visitar o museu.

- Se o senhor quiser, poderei abrir antes da hora...

- Não se preocupe. Eu tenho todo o tempo do mundo...

- Ah! Que bom. Então podemos conversar um pouco antes de lhe mostrar o nosso acervo permanente.

Trata-se da maior coleção de fotografias de casais já reunidas numa única coleção, pelo menos que eu tenha notícia.

- Não duvido porque é a primeira vez que ouço falar em tal coleção.

E enquanto a Maria Justa me falava sobre a coleção e sobre a sua ascendência portuguesa, (achei o motivo do nome dela) fiquei observando aquela criatura que falava mais que um repórter radiofônico de jogo de futebol ou de corrida de cavalos, e que não passava de um metro e quarenta de altura, pernas finas, sem bunda e com os peitos que, se bem divididos, dariam para umas cinco mulheres.

Tratava-se realmente de algo inusitado e que deve ter dado muito trabalho para quem se dispôs a organizá-lo.

As fotografias estavam dispostas linearmente na altura dos olhos, como numa galeria de arte, contendo, cada uma, uma folha ofício com os nomes dos fotografados, suas profissões, ascendências e descendências.

Uma delas despertou minha atenção por ser a única em que o casal estava sorrindo espontaneamente, como se algo de muito engraçado tivesse ocorrido no momento da fotografia.

O papel continha a informação:

João Crisóstomo de Alencar e sua esposa a senhora dona Enedina da Anunciação Gouveia.

Ele, fazendeiro plantador e comerciante de café, filho de João Constantino Alencar e de dona Maria Ribeiro de Assis.

Ela, de prendas domésticas, filha de Ernesto Gouveia e de dona Maria de Anunciação da Cruz Carneiro da Cunha Beirão de Matos.

São filhos do casal: João Crisóstomo, João Maria, João Ernesto, João Constantino, Maria Emília, Maria Enedina, Maria da Anunciação, Maria da Cruz, Maria das Graças, Maria João, Pedro Ernesto, Maria Lina, Maria Cecília, José Francisco, Jerônimo José, Maria Magdalena, João Leopoldo, Maria Doroteia, João Ignácio e José Maria Crisóstomo...

Caraca! Vinte filhos...

Putzgrila!

O velho João Crisóstomo não brincava em serviço, era de dia na agricultura e de noite na criatura...

Estava explicado o motivo de tanta felicidade...

Glossário:

Biboca = Lugar ou local ruim de se morar, ou mal localizado.

Bicho carpinteiro = corruptela de “bicho pelo corpo inteiro” consagrado na linguagem popular.

Caraca = Expressão de surpresa, susto. Pessoas que não falam palavrão substituem a palavra caralho por caraca.

Mangangá = Oxytrigona tataira. Também conhecido como mamangaba , besouro-mangangá, marimbondo-manganga, ou ainda vespa-de-rodeio, abelhão, mata cavalo, abugão ou zangão.

Putzgrila = expressão de admiração, espanto ou susto muito usada nos anos 70, principalmente pelos hippies.