Martelando

Gomide foi meu bisavô, que deve ter sido bem longevo, mas por uns três ou quatro anos deixamo-nos de nos conhecer. Deixou como herança, além dos genes sistemáticos, um enxadão e um martelo.

O enxadão, que só tratávamos por enxadeco, tinha o cabo curto como convinha, lâmina alongada, mas sem a prática não prestava pra nada. E a prática só o papai tinha, tanto para abrir uma valeta por onde a enxurrada escorresse, como para fazer cavar aquelas gigantescas covas de bananeira, que davam medo à gente até de andar à beira.

Mas e o martelo? Olhe que já conheci muitos deles, desde aquele clássico de um quadro do programa do Sílvio Santos - em que só às senhoras, e já de boa idade, era dado o privilégio de tentar acertar a

cabeça de um prego - a martelos famosos, como o da canção dos Beatles "Maxwell's Silver Hammer", também o Datemi un Martello, de Rita Pavone, e quiçá, o mais famoso deles, que foi para as telas e para a cama de tantas donzelas: O Martello Mastroianni.

E já tendo martelado tanto, volto ao legado do bisavô Gomide: sem o brilho de muitos outros seus pares, ele tinha contudo o charme, a graça de uma ferramenta confiável. E a elegância, de cabo a rabo, ou de rabo a cabo.

Perto dos outros martelos então é que melhorava sua expressão, mas ele não se jactava não. Vez por outra ele nos deixava uma marca de nossas pequenas desavenças, uma bolha na ponta de um dedo, ou debaixo da unha, mas na munha e no mais, quem com ele sofria eram os pregos.

E um dia, com a nossa casa em polvorosa, puxava-se um crescente aqui, fazia-se um aterro ali, eis que o martelo não voltou para a caixa de ferramentas, onde passava suas noites.

A procura foi intensa, mas em vão. Ficou a sensação de que tanto podia jazer sob o aterro do que antes fora a fossa ou, pior sorte, ter sido surrupiado por algum servente ou pedreiro, enamorado, de repente de seu jeito faceiro.

E de nada nos adiantou matelar a cabeça - ainda que um dia, sebastianamente, ele reapareça...