A roda da invenção
Ser menino nos anos cinquenta, sessenta, tinha a vantagem de não ter internet. Você podia dedilhar um violão, desenvolver melhor grafia, ou alguma outra habilidade que só à mão é que se fazia.
Era o caso dos carrinhos de pau. Os meninos do Zé Martins, já rapagotes, tinham o dom natural das artes, no todo, e nas partes. Mexiam com cerâmica,tocavam e compunham música e haviam até inventado um projetor de cinema.
Mas o que mais cativava de sua produção eram os tais carrinhos, que se não davam bom lucro, havera de deixar muito guri malucro. Dali foi que me veio a idéia da marcenaria. Mais que idéia, foi compulsão leréia. E convencer papai e mamãe de meus propósitos competitivos nas artes e ofíciosfoi moleza. Já tava passando da hora de eu deixar as peladas rueiras de lado e saber aproveitar melhor meutempo.
Com uma promoção, quiçá, ao cargo de ex-lavador titular das vasilhas. Vieram a banca de carpinteiro, as ferramentas, o torno, ao encontro de minha vontade superaquecida dedespertar meus adormentados talentos. E saíram, de minha lavratura madeiral, uma caixinha para guardar dinheiro, que também se assemelhava a uma fôrma de tijolo, um escorredor de pratos, feito à semelhança de modelo antigo, uma lanterna para se juntar às outras tantas que, rentes aos beirais dos telhados, iluminavam nossos natais, e o projeto de uma gaiola, que reunia arames de aço retirados de pneus velhos e umas varetas que resistiam ao aplainamento e à perfuração simétricos.
Mas era tudo experiência que se somava, malgrado ar esistência da madeira-prima, que procedia de insuspeitos caixotes de sabão. Era a hora de entrar na concorrência automobilística. E foi o João, um dos meninos do Zé Martins que me deu a dica: pra fazer a roda você precisa desse aparelhinho de metal, que tinha o formato de um quatro, de cabeça pra baixo.
Preso na na furadeira, você vai girando a perna externa, que tem ponta laminada, em torno do eixo - que é a perna traseira e, comendo a madeira, sai a roda, inteira. Consegui o aparelhinho sob encomenda. À primeira vista não me entusiasmei muito com a rusticidade do produto.
Minha suspeição se confirmou com a tentativa da prática: na melhor das hipóteses ele permitia riscar o desenho de uma roda sobre a placa de madeira. E dali não passava nem que eu gritasse besteira, ou rezasse brabo pra padroeira.
Jeito não havia. Ou era minha vocação que não se abria. Sem pendores pro breviário, dali parti pro seminário.