Sessenta dias curada

Setenta e tantos anos de saúde de ferro, e agora, aquele súbito, dorido e avassalador enferrujamento das juntas. Embora diagnósticos, remédios, benzeções, orações e a atenção da família abundassem, a cura se esquivava a toda tentativa.

E o catre passou a ser a circunscrição de Vovó, que alternava raros momentos de alegria como a visita de algum parente ou amizades da família, com as pontadas lancinantes que sem tréguas a perseguiam. Por esse tempo, como no in illo tempore evangélico, além dos já bem estabelecidos e reconhecidos curadores como Chico Xavier e Zé Arigó, correu notícia de que um santo homem nas cercanias de Belo Horizonte vinha operando verdadeiros milagres e que a ele multidões sedentas acorriam na esperança de consolo e alívio para os seus males.

Assuntadas e besuntadas as coordenadas, tia Rita e tia Isabel embarcaram para a capital mineira à busca daquela que parecia ser a última tábua da salvação - sem, no seu mais recôndito íntimo - e também sem que o soubesse, o intransigente vigário Guerino - abrirem mão de sua fé nas promessas da Santa Madre, a igreja.

Pouco afeitas ao traçado da capital, mas afoitas diante daquela necessidade cardeal, zanzaram por becos e quebradas até chegarem ao pátio dos milagres, de milhares já abarrotado, tornando o acesso ao santo homem uma quimera que se esvaía a cada instante - menos para o mais perseverante.

E enfim lograram assomar à proximidade daquele homem barbudo, tenso e impenetrável a quem revelaram, por interpostos agentes, s sua angústia pela enfermidade da mãe. Moídas, mas vitoriosas, voltaram pra casa com um papelinho branco, já não tão imaculado, onde se lia em cursivo:sessenta dias curada.

E foram vindo os dias, um atrás do outro, empurrando a esperança da cura. Nesse meio tempo o homem pisou na Lua, o Brasil ganhou o tri, e vovó, cumprindo o seu papel, intransferível, embora cada vez mais fraquinha, viu nascerem bisnetos e até uma neta temporona, até que o sofrimento, de muito maior comprimento, quem sabe a voz do vento, a deixou em paz. E aquijaz!

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 31/01/2015
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