O crédito do mérito

O telefone toca :

- Estou sim , respondo eu

- Está sim , ou está assim assim? Não leve a mal , estou só a meter-me consigo. Daqui fala José Carlos, ouvi dizer que já tinha mais dois contractos prontos para me entregar, finalmente resolveu trabalhar o que é sempre bom .

-O que diz é verdade,e assino por baixo. Consegui que mais duas presas se juntassem à catástrofe da ditadura bancária .

-Homem não leve as coisas tão a peito, o produto que tem andado a divulgar é dos melhores no mercado, somos uma empresa de referencia que presta um serviço de ajuda social e em tempos de crise toda a ajuda é necessária. ( enquanto o ouvia reflecti para mim mesmo , se neste preciso momento enfrenta-mos uma crise financeira , segundo aquilo que tenho lido nos jornais e de algumas conversas que vou captando à sucata no café , como é possível então que uma linha de crédito concebida a alguém que vive com pouco mais do que o rendimento mínimo e cujo crédito só o vai iludir a pensar que tem mais quando na verdade tem menos , possa ser visto como serviço de ajuda social ).

Fico à sua espera para nos encontrar-mos hoje para uma reunião, você traz-me esses contractos e eu pago-lhe já as suas comissões do mês anterior .

- Combina-mos ás três dá tarde ?

- Por mim óptimo, ás três da manhã só trabalho para a minha mulher ( deve ser deve, penso eu para mim próprio ). Ficamos assim combinados , não se atrase e traga-me os contractos limpinhos e sem fissuras.

- Sim sim não se preocupe , com licença então .

Na altura do telefonema deviam ser perto da uma e meia da tarde , o que me dava ainda bastante tempo para eu moldar a pessoa que eu lhe mostro ser , que por ventura não tem nada a ver com a pessoa que julgo ser. A minha barriga cortava-me a razão , fui então preparar o almoço. Comi , senti-me melhor e sai à rua em direcção ao café mais próximo do local onde me ia vender . Normalmente tomo sempre café depois do almoço , mas este tinha para mim um carácter muito mais profundo que os demais . Era a altura onde eu me preparava psicologicamente , para a conversa que iria ter com o `exterminador vendedor de cartões´ , o senhor meu superior. Pouco ou nada tinha para lhe apontar, sempre me tratou bem , dentro dos modos, educado e faz-se preocupado. O problema é que o que saía da boca dele nada tinha a ver com o que os seus olhos me diziam. E pus-me então a imaginar a conversa que iria-mos ter mas sem `censura´.

- Então vagabundo como tem passado?

( Fodass outra vez este puto de merda, aparece- sempre aqui todo bem arranjado com a mania que é dono do mundo )

- Está tudo bem Sr. José Carlos, o nosso Benfica ganhou temos de nos dar como felizes não é assim ?

( Este bronco de merda deve julgar que lhe sou alguma coisa, obriga-me a dar-lhe o mais falso sorriso que há dentro de mim e a racionalizar todas as "bonitas" palavras que o meu cérebro conservou ao longo da estadia neste peça de teatro que muitos designaram de sociedade e ainda tem a lata de me perguntar se está tudo bem )

- Disse-me que tinha dois contractos para mim , onde estão eles então ?

( Já trabalha aqui a mais de dois meses , e o máximo que me trouxe até agora foram três miseráveis

contractos. Fedelho arrogante, devia passar o resto da vida a limpar os meus restos para ver o que era de facto um trabalho sujo . Tou de olho num descapotável Opel , que chega este mês ao mercado , e este puto irritante só me atrasa a vida . Três contractos ? deve estar a espera que eu compre um daqueles carrinhos de merda , sem ar condicionado , sem vidros fumados , bancos em pele , jantes novas , tudo aquilo que tenho direito .)

-Sim tenho aqui os dois contractos para si, com protecção financeira e tudo .

( Devia era trazer-te os contractos banhados em sangue , para ver se a consciência te pesava cabrão!)

-Assim é que eu gosto , fico sempre feliz quando vejo um trabalhador meu a dar o máximo pela empresa .

( Não fazes mais que a tua obrigação , tas aqui é para trabalhar. Se voltássemos ao tempo da escravatura gratuita eu dizia-te , trabalhavas ,calavas-te e dava-te uma migalha de pão como pagamento , e ainda te obrigava a come-la como se fosses um pombo . Ai é que eu me ria , um serão em cheio, a acompanhar bebia uma reserva de tinto francês e comia uns canapés para confrontar o estômago)

- Está tudo em ordem ?

( vá piegas do caralho diz-me lá que falta alguma coisa )

- Sim tá tudo , os contractos vão de seguida para o nosso consultor que irá dar continuidade ao processo. Tenho aqui como lhe prometi , pois sou um Homem de palavra, as suas comissões. Tem de estar contente consigo próprio, esse dinheiro foi ganho pelo seu mérito veio do seu suor , de-lhe o uso que achar melhor .

( odeio a parte de dar dinheiro a este filho da puta, ainda por cima não gosto nem do seu trabalho nem do seu aspecto . Vem -me para aqui , todo elegante , com o corpo musculado , cabelo bem penteado, com um ar contente , deve estar a ver se me faz inveja . Coitado inveja , como se alguma vez um merdas da classe média me fizesse inveja. Inveja deve ter ele de mim, o patrão sou eu )

- Muito obrigado , quanto ao uso do dinheiro acho que o melhor é poupa-lo, isto não está fácil sabe .

( a primeira coisa que vou fazer com esse dinheiro, é ir para uma tasca embebedar-me e fazer pouco de ti meu porco. Não duvides disso )

- Pois é verdade , eu bem sei. Prontos vagabundo parece que está tudo tratado, agora tenho de ir para uma reunião urgente . Sabe que o trabalho para mim nunca acaba.

( não vejo a hora de te ires embora, ´isto está difícil para todos´ é mesmo conversa de pobre. Hoje o meu dia foi de mais , trabalhei que nem louco, acho que vou ligar à ucraniana para me divertir um pouco. )

- Até à próxima então

( espero bem que seja daqui a muito tempo , sempre que aqui entro sinto-me menos humano)

Quando já me encontrava psicologicamente capaz de o iludir , pus-me a caminho da empresa. Faltavam cinco minutos para as três, o que significava que iria ser pontualíssimo, quando lá cheguei a conversa decorreu normalmente , ou seja da mesma maneira que a relatei em cima só com o pequeno senão de haver `censura´, e tanto ele como eu guardá-mos para nós aquilo que pensamos um do outro. Terminada a reunião , saiu da empresa com as minhas merecidas comissões , o que queria dizer que tinha dinheiro no bolso , e quando é assim tudo te chama. Ouvia o café a chamar-me, o shopping , a loja de roupa , o stand , a lotaria , a loja informática , o quiosque , enfim tudo o que consome aquilo que eu tinha no bolso. Experimentem dar dinheiro um surdo, e vão ver se ele não ouve exactamente o mesmo que eu ouvi !

Era a altura certa para me sentir contente , tinha me livrado do `exterminador´, tinha dinheiro no meu bolso , tudo indicava que pelo menos durante um pouco eu ia me sentir bem. Mas não aconteceu exactamente assim , de facto o dinheiro continuava lá , o `exterminador´ já devia estar a sentir-se Homem com a ucraniana , e eu do nada sou abalado pela minha consciência que me põe a pensar . Serei eu assim tão diferente do `exterminador´ ? É verdade que não gasto o meu dinheiro em ucranianas e muitos menos em carros descapotáveis , mas gasto .

Não serei eu também um culpado pela crise que vivemos? Se calhar também eu tenho sangue nas minhas mãos como o `exterminador´, e pensar que só o faço porque tenho de conseguir dinheiro para me manter `vivo´ é uma desculpa .Uma desculpa sempre que digo que sou forçado a um emprego que não gosto, que critico , que não tem escrúpulos, desculpas sempre que digo que não tenho alternativa desculpas , desculpas e desculpas e eu nunca gostei de desculpas.

- Vou mas é gastar este dinheiro em algo que me anime , vai-me fazer-me sentir melhor !

Vagabundo
Enviado por Vagabundo em 03/12/2014
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