Liberdade
Ao ver aquele corpo cadavérico em meio ao capim alto, em um pasto muito longe da civilização, inerte, enfartado, com olhos esbugalhados, boca roxa e semblante que deixava transparecer o pavor que sentira antes do último sopro de vida, pude ver o quão fino é o fio que separa a vida da morte.
Fiquei petrificado por alguns segundos ali diante do corpo já sem vida. Restos mortais de um conhecido ainda jovem, mas carcomido pelos solavancos de uma vida desregrada, criminosa, que não foi escolhida, mas imposta pelo destino. Um destino cruel, fanfarrão e ardiloso, que brinca com a vida tal qual um ventríloquo com seu boneco de madeira. O rejeitado pela mãe biológica ao nascer e adotado por um homem perverso estava agora sucumbido.
Pela sua feição, acredito eu, lutara até o fim de seu fôlego; reagira até faltar o ar dos pulmões; e num febril delírio de quem sabe que os segundos de vida que lhe restam estão contados e passando cada vez mais rápidos, viu diante de si, como em uma tela de cinema, onde nunca estivera, passar seus poucos anos de vida. Ou do que acreditava ser uma vida.
Se fosse um filme seria um drama, tal qual “O morro dos ventos uivantes”, baseado na obra imortal da britânica Emily Jane Brontë; se fosse uma peça teatral, certamente, seria uma tragédia grega em cinco atos, ao estilo de Ésquilo, “a trilogia de Orestes”, interpretando o papel principal. Sendo condenado como Atreu, cumprindo-se a previsão do oráculo.
Mas tratava-se de vida real e o pobre infeliz, jazia ali como gado morto, aumentando a cada minuto sua rigidez cadavérica e sua cor azulada. Mudando de vermelho para roxo e em seguida para amarelo, na palidez dos corpos já sem alma.
Tudo começara um dia antes, quando junto com dois “amigos” planejara o crime perfeito. Mais um dos muitos que já praticara. Havia deixado a cela onze do presídio local e ao se ver na rua, de posse da tão sonhada “liberdade”, descobrira que nunca estivera tão encarcerado, preso ao passado.
Descobriu que ex-detento é e sempre será detento. Detento do vício das drogas pesadas, detento da fama que cultivara em cada novo tropeço. Detento do preconceito, detento do medo daqueles a quem tinha um dia prejudicado, detento daqueles com quem tinha pendencias e acertos inacabados.
Descobriu que sua liberdade estava justamente junto aos quais, fora um dia flagrado e levado para a cela úmida e fria, onde permanecera por cinco anos. Não tinha para onde ir. Era forasteiro e “persona non grata” entre os que compartilhavam do mesmo sangue.
E foi assim, "detento livre", que acabou entre os seus verdadeiros “semelhantes”, recebido com festa e com a alegria de quem voltava do mundo dos mortos. Recebido com glória pelos seus conviventes sem glória nenhuma.
No barracão imundo, com restos de comida, latas de refrigerante ou cerveja barata; fora recebido e acolhido com alegria, cachaça barata, prostitutas fétidas para tirara o atraso de cinco anos e muita droga. Um banquete que durara até a última porção. Quando, tanto o nobre visitante quanto seus anfitriões, descobriram que ainda precisavam de mais e que para isso, teriam que buscar alguém que os financiasse.
Entorpecidos, saíram pela madrugada e tomaram posse do primeiro veículo que encontraram pelo caminho, aberto e ligado com mãos hábeis que denunciava anos de prática, seguindo em alta velocidade, com o som ligado em sua potência máxima, para a cidade vizinha, onde com as mãos vazias sob as roupas sujas, faria tremer de medo algum comerciante e este, lhes entregaria o que quisessem.
Já na pacata cidade, com pouco mais de vinte mil habitantes, foi fácil abastecer o veículo e roubar o funcionário do pequeno posto de combustíveis. Seguiram então para uma boca de fumo, abasteceram-se com álcool e toda droga que o pouco dinheiro tomado no assalto deu para comprar e seguiram para uma estrada vicinal, onde poderia planejar o próximo passo.
Escolheram como alvo: uma casa lotérica. Agiriam por volta das 16h, quase fim de expediente. Já conheciam o local. Sem guardas, sem câmeras, cidade pequena, dois ou três policiais sonolentos, não por preguiça, mas pela calmaria e a falta do que fazer.
Depois do assalto, fugiriam por estreitas estradas de terras, repletas de entroncamentos, bifurcações que levavam a três ou quatro municípios diferentes e com campos imensos, cheios de matas e brejos, onde poderiam se esconder até o cair da noite, caso algo saísse errado.
* * *
Passava um pouco das 16h quando estacionaram a porta da lotérica. No interior da agências, umas poucas pessoas, em sua maioria idosas. Decidiram que não levariam o dinheiro de nenhuma das pessoas na fila de atendimento, somente da agência. “Afinal ela tem seguro”, afirmou ele, como que a se justificar, ou acreditando que tendo seguro, seu pecado seria menor e seu crime isento de culpabilidade.
Apenas ele e outro amigo desceram do carro, enquanto um terceiro permanecia ao volante, mantendo o carro ligado. Já no interior da agência, bastou gritar assalto para que todos se encolhessem e a baratinada funcionária, se afastasse do caixa para que ele recolhesse o que podia, no menor espaço de tempo. Menos de cinco minutos depois, já estavam seguindo em alta velocidade em direção a zona rural.
Mas alguma coisa havia dado errado, podiam ouvir a sirene tocando alto e se aproximando cada vez mais. Chegaram a primeira estrada de terra e seguiam em alta velocidade. Podiam ver pelo vidro traseiro, a nuvem de poeira que se aproximava cada vez mais rápido.
Tomaram uma estrada vicinal ainda mais estreita e torciam para não encontrarem com algum veículo seguindo no sentido contrário. Pareceriam ter se distanciado quando sentiram um forte solavanco e viu o carro subir como se fosse voar.
Desceram rapidamente quando enfim o veículo parou. Estava inutilizado. Haviam batido em algo que quebrara o eixo dianteiro, teriam que fugir a pé, se esconderem, esperarem pela noite, para que em meio a penumbra, pudessem sair de seus esconderijos sorrateiramente.
Foi quando ouviu gritos para que se entregassem. Não pensou em mais nada, apenas se pôs a correr, saltando cercas, trombando em galhos baixos de árvores que encontrava pelo caminho. Cada um seguia em uma direção, como haviam combinado. Cada um por si.
Já estava próximo a uma lagoa tomada por aguapés quando sentiu sua pulsação aumentar, as vistas escurecerem e faltar-lhe o ar. Estava morrendo, podia sentir. Não pode mais correr e acabou tombando em meio ao capim.
Sentia-se agora leve, como se flutuasse. Pela primeira vez em sua vida e em sua morte, sentia-se realmente livre. Os sons foram ficando cada vez mais distantes até que por fim adormecera para nunca mais voltar a acordar.
Eu trabalhava em um jornal local quando os fatos ocorreram. Conhecia o jovem desde sua infância sofrida, quando era constantemente espancado por seus pais adotivos, aos socos e pontapés, obrigado a fazer entregas para o mercado que o pai de criação mantinha, carregando muitas vezes o peso de seu corpo franzino em um carrinho improvisado com madeiras.
A autópsia apontou parada cardiorrespiratória como causa da morte, provocada pela debilidade física e auto teor de álcool e drogas em seu organismo, somado ao esforço físico exercido na tentativa de fuga.
Os dois “amigos” acabaram presos e decorridos quatros anos, tiveram por fim o mesmo destino, destino de quem escolheu viver dez anos a mil, ou como acreditam: Em liberdade.