Fazendo compras

Eu estava com pressa. Era sexta-feira e eu aproveitava o intervalo do almoço – que era curto – para fazer as compras. Não gosto de ir ao supermercado, ainda mais com pressa. Prefiro que a minha esposa as faça. E tenho certeza que ela também prefere. Não entendo nada de psicologia, mas sei, sem sombra de dúvida, que as mulheres gostam de maquiagem e compras enquanto homens preferem uma cervejinha e futebol. São verdades quase universais. Quase, pois existem homens que uísque é única bebida e apreciam somente a corrida de carros. Não é o meu caso.

No entanto eu empurrava meu carrinho com velocidade automobilística pelos corredores, tentando ser fiel a “listinha” que carregava na mão e que dificultava um pouco as manobras arriscadas, principalmente nas curvas que exigem mais do motorista, exigindo boa concentração até dos mais experientes.

Pasta de dente – dizer creme dental é mais correto? -, sabonete, xampú ou shampoo?, aparelho de barbear, desodorante. Leite, cereais integrais, granola, farinha de aveia, chocolate em pó (instantâneo).

Suco, água mineral, refrigerante. Biscoito, salgadinhos, massa – talharim ou fusilli? Acho que fusilli é a mesma parafuso - , extrato de tomate, queijo ralado.

Aprendi a fazer certo. Deixo por último os produtos resfriados e congelados, senão ao final das compras já tem coisa estragando. Iogurte, queijo, margarina, salsicha, bacon.

Vou para o lado dos vinhos, que não comprarei pois estamos entrando na primavera que traz junto seu calor, momento próprio para a “cervejinha”, depois do inverno desta-vez-nem-tão-rigoroso do sul, mas que espanta muito marmanjo bebedor de cerveja.

Ao lado dos vinhos, bem arrumados por sinal, há uma pequena banca de bichinhos de pelúcia, uns maiores, outros menores. Me parece sem razão de estarem por ali. Junto aos vinhos, ao lado dos iogurtes? Porque disso?

Mas os bichos, que não estavam nem aí para o frio vindo dos refrigeradores, não me chamaram a atenção e sim uma senhora alta, que não era nem magra nem gorda, mas alta. Cabelos longos e loiros. Não era bonita nem feia. Observando melhor, no centro um bom pedaço de cabelos grisalhos misturados aos loiros. Estava vestida toda de preto, de malha e botas. Não era a última moda, mas também não estava mal-arrumada. Ela tocava e olhava atentamente para aqueles bichos provavelmente macios. Mas porque ficaria tanto tempo olhando e a(na)lisando eles? Qual o significado? Teria algum sentido especial?

Parei um momento e me pus a observá-la. Algumas pessoas passavam por mim apressadas, outras nem tanto. E eu olhava para ela. De repente, um carrinho bateu no meu e algo mexeu dentro de mim. Ela me fazia lembrar alguém próximo, como uma velha conhecida. Mas não era.

Não consegui parar de observá-la e admirá-la. Ela não me viu, estava concentrada demais no que fazia. Não me parecia próprio aquela mulher – com aquelas características – dedicar-se daquela maneira àquela “tarefa”. E aquela tranqüilidade? Aquela paz? Por quê?

Será que ela pertencia ao controle de qualidade do supermercado? - Pensei, ironizando. - Se fosse, parecia satisfeita com o que via. Não devia ser.

Ou ela possui uma lojinha e pretende comprar certa quantidade para revender? Ela poderia estar arrependida ter comprado um lote igual numa loja especializada que pagando um preço bem mais alto. Ou a sorte de ter comprado o mesmo boneco bem mais barato numa lojinha qualquer. Seu rosto não demonstrava nada, nem um mínimo detalhe, uma pequena pista que eu pudesse me apegar e resolver a questão.

E se ela estivesse perdida, doente mental que era e parou para admirar esses brinquedos infantis? Qual seria sua idade mental? De qual instituição fugiu?

Talvez ela tenha ficado incumbida de dar um presente de aniversário, mas todos eles eram caros demais para o seu bolso. Decepcionada, trocava os bonecos, um mais caro que o outro.

Teria ela percebido que aqueles brinquedos fariam a alegria daquelas crianças pobres que vivem no abrigo para menores perto da sua casa? Ela poderia ser a causa de uma alegria recompensadora, sem preço, ela imagina.

Por ser professora de geografia – pensei - sabe que essa empresa se aproveita da mão de obra barata, quase escrava da China para baratear e se mostrar competitiva. Ou sabe ainda que em São Paulo há salas escondidas com asiáticos trabalhando em regime de servidão. Eis o resultado desse trabalho.

Poderia ela imaginar que tem habilidade para fazer bonecos como aqueles. Ou que já faz, mas o que adianta? Aqui eles são mais baratos – pois são produzidos em série - e possuem cores muito mais atraentes que ela jamais conseguiu em nenhuma loja de tecido.

Estaria ela lembrando da infância pobre que nunca pôde adquirir um boneco semelhante àqueles? Estaria ela lembrando do brinquedo da filha ingrata porém amada que partiu e não manda notícias? Ou do neto que não teve e que nunca esqueceu de desejar?

Ela sai. Na verdade acho que já saiu há alguns minutos e não percebi, pois meus congelados estão pingando. Não vou até os bonecos. Eles não me importam. Interrompo minha inércia e sigo adiante.

Faltam-me coisas ainda. Vou adiante e paro numa encruzilhada. Um adolescente me olha atravessado por eu estar atravancando sua passagem. Vê? Eles também têm pressa.

No setor de bebidas percebo ela passar no corredor ao longe. A mesma tranqüilidade com que eu a observara instantes atrás, junto aos animais inanimados. Serena, leve e quase pura. Some atrás das prateleiras. Quase hipnotizado vou. Sigo a mesma direção, porém não a encontro mais. Foi-se.

Recolho ao carrinho o que me resta. Vou ao caixa. Pago.

No estacionamento, guardo tudo no porta-malas, inclusive os congelados descongelados.

Sigo pela rua lateral ao supermercado e lá está ela pela calçada. Abro o vidro e, ao chegar perto, ela olha para mim. Abano para ela sem sorrir, ela retribui o aceno sorrindo e segue seu caminho sem olhar para trás...

Reconsidero. A verdade: passei por ela, ela seguiu seu caminho. Não houve acenos. Mas eu sorri discretamente, apesar dela não ver.

Pelo que pude observar, ela comprou pouco. Se comprou um bicho? Pouco importa.

De minha parte comprei o que tinha de comprar. E enchi um carrinho de impressões.

Parece que perdi um tempo danado. Pergunto: e daí?

(...)

Será que esqueci de comprar algo?

Danilo Hax
Enviado por Danilo Hax em 02/09/2014
Código do texto: T4947482
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