Despedida

"Não é inverno. Não faz frio nem tampouco chove. É um dia como os outros. As folhas não caem das árvores e acho que não se pode esperar isso delas, afinal não é outono. O céu está claro, limpo de nuvens. E ele, o sol, aqui aparece como se fosse mais um de nós reunidos, discreto, tranquilo e silencioso. É verdade, muitos poderiam dizer que hoje não é um dia diferente dos outros, até porque tudo que vemos agora ao nosso redor já foi, de alguma forma presenciado, vivido, experienciado por outras pessoas antes de nós. Mas somente as pessoas mais sensíveis poderiam perceber essas pequenas variações, essas nuances da vida e da natureza aqui presentes. Sim, elas existem por certo, mas acontecerá que nem todos terão esse privilégio de senti-las, pois é preciso ser ou pelo menos estar pronto para isso. Assim, como o rigoroso inverno tornou-se agora primavera aos nossos corações endurecidos ou não, só resta esperar que todos nós possamos entender e aceitar o que se passa hoje. E sendo ou estando mais sensíveis, poderemos não só apreciar os encantos que só a natureza pode nos mostrar, mas principalmente compreender o sentido de que a vida nunca acaba. Apenas se transforma."

Após ler esse texto que eu mesmo escrevi ainda hoje, cumprimentei os parentes, que me agradeceram pelas palavras de apoio. Porém fui eu que insisti em ler. E fiz questão de escrever para ele, já que não pude fazer algo mais em tempo. Esse senhor que hoje faleceu não é meu parente. Não sei nem se posso chamá-lo de amigo. Eu tenho amigos e acho que sei o que é ser um. Porque para se ser amigo são necessárias várias coisas no meu ponto de vista: respeito mútuo, sintonia, gostos em comum, compreensão, empatia, interesse pelo outro, intimidade, contato. Dessas, até chegamos a conhecer algumas, mas mesmo assim não sei se ele me considerava também seu amigo ou algo próximo disso. Porém penso eu que não nos foi possível alcançar um outro nível.

Seu Romero era uma pessoa solitária. Vivíamos no mesmo condomínio. Eu sempre o observava, e sempre via-o sozinho. Normalmente sentado em algum dos bancos espalhados ao lado dos prédios, onde haviam plantas, uma árvore e um bonito gramado. Ali ele ficava, durante muito tempo, só, observando o que quer que passasse por ali: os carros, os cães, o movimento das pessoas, as fisionomias, como se isso o aproximasse mais delas. Eu percebia que alguns o cumprimentavam, mais por educação do que por conhecê-lo ou por amizade real. Não sei se ele realmente conhecia alguém por lá. Por vezes ele conversava com algumas pessoas que por ali passavam, parecendo ser mesmo conhecidos ou amigos. Mas era o tipo de gente comunicativa, falante, simpática. Logo adiante já conversavam, contavam histórias e riam com outras pessoas. E seu Romero ficava para trás, sentado no seu banco, do mesmo jeito que estava antes. Só.

Às vezes, eu o via caminhando vagarosamente pela calçada. Ele fazia um trajeto não muito longo, porém muito lentamente, pois o local não era grande. A tudo isso eu observava da janela do meu apartamento, enquanto estudava ou usava o computador. Eu também era uma das pessoas que o cumprimentava de passagem. Apesar de conhecer os seus passos e hábitos, os horários e os locais, eu não era senão mais outro. Sempre fazia questão de dizer um oi ou dar um bom dia. E me esforçava para ser - e não somente parecer - simpático. Não sei se ele percebia. Retribuía o cumprimento.

Por muitas vezes pensei em parar e conversar com seu Romero, mas não sabia por onde começar. A minha timidez exagerada complicava tudo ainda mais. Como iria começar? Perguntando sua banda inglesa de rock preferida? Ou o tipo de filme que gosta de assistir, se terror, ficção científica ou mesmo comédia. Não? Não seria por esse caminho. Ou então conversar sobre o assunto mais infalível, previsível e comum possível: falar sobre o tempo. Comentar que não chove ou que chove demais. Reclamar que está muito frio. Que o calor, no dia de hoje, está demais. Não, também não. Eu não conseguiria.

Às vezes eu pensava comigo: seu Romero não deve ter nenhum parente vivo. Ou então, quem sabe, nenhum parente na cidade. Ou pelo menos que esteja por perto. Mas não era assim. Uma vez, uma única vez, eu notei que ele caminhava mais lentamente, com uma certa dificuldade. Nesse dia vi duas mulheres, talvez uns trinta e cinco anos mais novas do que ele. Seriam filhas, netas ou sobrinhas, não sei. Mas com certeza, pela proximidade, eram parentes e estavam preocupados com o seu estado de saúde. Elas caminhavam abraçadas nele, uma delas com um desses exames na mão – uma radiografia, acho – e pelo jeito iam juntos ao médico.

Sempre me dei bem e gostava de conversar com o meu avô por parte de pai. Pescamos diversas vezes juntos, e uma vez até me ajudou a construir uma mesa de ping-pong de algumas tábuas que estavam sobrando no pátio. Ele me chamava de “chefe”, referindo-se à maneira como meus amigos me chamavam numa brincadeira que presenciou, certa vez. Na sua visita à nossa casa ou quando eu ia visitá-lo, sempre me sentia à vontade, cercado de atenção e cuidados Meu avô materno, eu não cheguei a ter contato, pois ele faleceu pouco antes de eu nascer. Gostaria de tê-lo conhecido, mesmo que tivesse sido por pouco tempo. Ele me é apenas um nome e algumas fotos antigas. Só isso. Acho que a falta que eles fazem e o fato de morar sozinho em outra cidade, me fizeram pensar em seu Romero. Três “esses”: Substituição. Saudade. Solidão.

Seu Romero continuou sozinho no seu banco. Eu continuei trancado no meu apartamento, com as minhas coisas, com o meu estudo.

Passaram-se algumas semanas de muita correria. Não via nem lembrava mais de seu Romero. Decidi que iria conversar com ele, não importa o assunto. Sobre o tempo mesmo, não importa. Sobre futebol ou política, qualquer coisa.

Encontrei-o no mesmo banco de sempre. Cumprimentei-o, falei sobre o tempo, sobre o time local. Conversamos sobre trivialidades, banalidades. Ali ficamos por alguns minutos. Longos para mim. Provavelmente curtos para seu Romero. Nos despedimos, eu disse que precisava estudar. Desejou-me bons estudos. Agradeci e saí. Fiquei contente por ter conseguido finalmente conversar com seu Romero. Por, finalmente, enfrentar meus medos de frente. Foi só uma primeira conversa.

Agora que já nos conhecíamos, outras conversas viriam, com outros assuntos. Cidade natal, profissão, família, desejos, comidas, sonhos. Foi uma porta que se abriu e uma vez aberta só se fecha se quisermos. Dormi bem, muito bem aquela noite. Havia superado minha timidez.

Na tarde do dia seguinte, quando voltava da faculdade soube na portaria que um morador havia morrido. Não liguei e subi ao meu apartamento. Da janela, enquanto comia alguma coisa, percebi que algumas pessoas caminhavam em direção à saída do condomínio. Entre elas estavam as duas mulheres que vi a algum tempo atrás com seu Romero. Tremi. Percebi que ele havia falecido. Desci.

Enquanto descia pensei em voltar mais de uma vez, afinal quem era eu? Como iria me apresentar? Ninguém me conhecia, ninguém me daria ouvidos. Estariam todos preocupados com outras coisas mais importantes e a essa altura e eu seria um estorvo, mais um, aliás, dentre todos que envolvem a morte de uma pessoa. Uma pessoa querida.

Como se não desse ouvidos a mim mesmo, me apresentei à família dele, sem medo. Disse ser um amigo. Não sei se faltei com a verdade ou não. Eu me considerava sim, seu amigo. Ofereci-me corajosamente para dizer algumas palavras de conforto no enterro, que ocorreria no final da tarde. Com alguma dúvida, hesitação e troca de olhares, aceitaram.

Durante um longo tempo, talvez a vida toda, tive dificuldade de me comunicar com as pessoas. Em diversos momentos, importantes para mim, não consegui me expressar, causando-me uma frustração terrível, profunda. Mas com as palavras, era bem diferente. A timidez não tinha vez, eu era mais eu. Era senhor do minha vontade.

Após a despedida a seu Romero, fui para casa um pouco abatido, mas em paz. Em paz com minha consciência. Em paz com Seu Romero. Fiz minha coragem sobrepujar minha timidez exagerada.

Nessa noite, ainda sonhei com seu Romero. No sonho, ele agradecia minha inspiração na homenagem que fiz e disse que minhas palavras vieram completar todas as conversas que poderíamos ter tido e não tivemos. E que eu não me preocupasse e não tivesse pressa, pois eu viria a ser o que sonhava, pois ele descobriu agora que a eternidade restaura a tudo e a todos e preenche todos os espaços, até mesmo o espaço dos corações vazios.

Danilo Hax
Enviado por Danilo Hax em 11/08/2014
Código do texto: T4918838
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