AO FIM DO CAMINHO
Ele olhou para ela. Ela olhou para ele. Olhares sempre são a causa e o princípio de muitas histórias. E com essa não será diferente. Dia quente e sem previsão de chuva, suor escorrendo e fazendo percurso nos mais variados formatos de testas humanas. Sapatos querendo fazer bolhas nos pés e roupas parecendo cada vez mais calorosas e apertadas, grudando vez ou outra, no corpo magro e branco de Alice. Foi assim que ela o conheceu. Sempre sentado no mesmo banco de pedra da praça de São Jerônimo, com a roupa encardida, chinelo trocentas vezes remendado, cabelo crescido e despenteado, rosto sujo e dentes amarelos. Mantinha um dos pés cascudos em cima do banco e o outro descansado no chão gasto. Foi assim que Augusto conheceu Alice. ''Moça dessa idade não dá importância à Zé ninguém'', pensava o garoto que mal completara treze anos, conhecido no bairro como ''Gutinho do piolho''. Gutinho não tinha mãe e menos ainda pai, fora criado por uma mulher da qual não se sabe o devido grau de parentesco que possui. Passou a infância toda sentado naquele banco de praça, ali era sua casa. Era ali que era alimentado, vez ou outra, por alguma alma caridosa, enxotado como bicho peçonhento ou analisado da cabeça aos pés por qualquer pedestre suficientemente curioso. De qualquer forma, era ali que passava a maior parte do tempo, portanto, era a sua casa.
Alice desfilava todas as tardes sua magreza em frente o banco de Gutinho, ainda que inconscientemente. Não era o tipo que olhava para os lados ou parava para falar com estranhos. Simplesmente passava e ia embora sem deixar rastros ou esperanças, como o vento seco do mês de agosto. Onde ela morava, Gutinho nunca soube e nem procurou saber. Não tinha ânimo suficiente para sair do conforto de seu banco e seguir uma menina magra e desinteressada. É claro que havia um pouco de medo na história. O que poderia acontecer se um menino de rua acompanhasse uma jovem? Gutinho conhecia perfeitamente o descaso que recebia das pessoas que ele costumava chamar de ''normais''.
Os dias cada vez mais quentes, como tudo na vida, continuaram a passar enquanto Alice exibia sua magreza e Gutinho observava tudo a sua volta com um dos pés em cima do banco. Queria muito olhar nos olhos daquela garota e ver mais de perto os traços que só via de passagem, mas a jovem nunca olhou para o lado. O garoto tentou assoviar, cantar qualquer música que escutava no coreto para ver se obtinha uma resma daquela atenção que parecia impossível de ser chamada.
Um dia, resolveu que seguiria os passos de Alice e descobriria o destino de todas as tardes daquele corpo magro e quase albino. Respirou fundo, levantou discretamente como se fosse um cavalheiro medieval e tentou acompanhar a menina com passos silenciosos e um tanto distantes. Depois de andar quatro quarteirões, Alice abriu os portões de uma bela casa de dois andares e já ia entrando quando uma mulher gorda, bem diferente de Alice, exceto pelos olhos que eram igualmente pretos e saltados, olhou para Gutinho e cochichou algo no ouvido da garota que pela primeira vez na vida, pareceu conseguir olhar para trás. Gutinho tinha ouvido tudo, tudinho. A mulher gorda cheia de jóias disse: não vá contar ao seu pai que o bastardo dele veio parar aqui em frente hoje!
As lágrimas escorreram pelos olhos de Gutinho quando viu a expressão de sarcasmo no rosto da gorda e o pequeno sorriso de Alice. As duas entraram em casa. Daquele dia em diante, Gutinho nunca mais foi visto pela população.