Dias frios

Fazem três graus centígrados nesse momento no bairro Eldorado. Após uma noite com geada que chegou à mínima de zero grau... – informa o rádio que sempre ligo para me ajudar a despertar e me fazer levantar, finalmente.“Hoje será mais um daqueles dias frios”, completa o locutor. Eu sei disso.

Até que não é tão difícil sair da cama num dia como esse. Basta um impulso enérgico de erguer-se da horizontal e vestir-se. O difícil é a mente convencer o corpo de que é realmente importante sair àquela hora - tão cedo!! - e que não é viável levantar um pouco mais tarde. E um pouco mais tarde. E um pouco mais. E...

Pronto. Já de pé tudo fica mais fácil. Bem agasalhado é possível pensar em usufruir das delícias do frio. Um café bem quente e saboroso é um exemplo óbvio. Tivesse eu mais tempo nesse momento, - e teria, não fosse pelo “um pouco mais...” - daria até para curtir um bom chimarrão. Ou, quem sabe, se pudesse voltar no tempo – e no espaço, da cozinha - dos meus avós, alguém estaria com o fogão à lenha aceso desde as primeiras horas da manhã. Que alvorecer. Nostalgia. Inveja boa.

Mas não é o caso. Apesar de eu possuir um fogão à lenha – foi uma das primeiras coisas que comprei para a casa, não sei porque - cedo descobri que não conseguiria aproveitá-lo. Reflexo dos tempos. Fogão a lenha não, mas carro, celular, internet, fax, isso sim. Teoricamente vieram para agilizar nosso mundo para que tivéssemos mais tempo para as coisas do corpo, da mente e do espírito. Mais uma pseudo-profecia que não se realizou.

Vou de café instantâneo, então. Desligo o rádio, pois começa a escorrer sangue vivo das reportagens sensacionalistas. Tenho o estômago fraco e o dia está a pouco começando.

Até que não é tão duro encarar o vento gelado das ruas. Com meu sobretudo acima de todas as outras roupas e mais a manta no pescoço, - opinião minha - não há inverno. Duro é presenciar um ignorante como aquele do outro lado da rua chutar um cusco de rua. Não bastasse o frio e a fome do animal, ainda isso. Tusso: “deixa o outro, cachorro”. O cara não me ouviu. Tudo bem. Não vale a pena.

Já no escritório cumprimento cordialmente os colegas. Pareço invisível? Longe disso. Mas algumas pessoas parecem ter o dom de te fazer sentir assim. A eles ofereço o meu desprezo oculto e momentâneo, exatamente o mesmo deles, nem um pouco mais, – faço questão - a esses que parecem gostar de tripudiar. Prefiro até aos inimigos honrados. Estes ao menos se reverenciam antes da batalha e no fundo, eu sei, admiram-se mutuamente. A vocês maus colegas ou colegas maus, meu esquecimento... Do que eu falava mesmo?

Somos uma equipe, e uma equipe funciona somente quando seus integrantes pensam em conjunto e no conjunto – foram as palavras do nosso gerente no início da reunião matinal. Boas palavras. Uma pena que na prática as coisas funcionem de modo diferente. Semana passada recebi uma bela amostra do que as pessoas são capazes para se auto-promover.

Vindo de alguém que se referiu a mim, certa vez, como amigo, fui citado como exemplo do que não dá certo. Inocentemente, comentei há algum tempo atrás as minhas idéias, ainda inacabadas, numa conversa informal com ele e estas foram citadas – brilhantemente, inclusive - na reunião seguinte como “desnecessárias e ultrapassadas”. Fiquei de pés no chão e bermuda curta. Pois é, “amigo”. Como posso te agradecer por esta bela lição de como não ser e não agir?

Sei bem que poderia contestar e me justificar, - e quase fiz, a indignação foi grande. Porém ficou claro que àquela altura soaria, digamos, como um choramingo infantil. Meu silêncio foi sábio. Vejamos pelo lado positivo: foi oportunidade de aprendizado. Duro foi ver os sinais afirmativos dos colegas com a cabeça. “Aos vencedores tudo. Aos perdedores...”

Como não fosse suficiente, ainda tinha de ouvir as histórias longas e sem sentido do Gomes. Os longos períodos da Sara ao celular. As reclamações periódicas da Suzy e da Sandra. As fugas da sala do Norberto. E a apatia geral da “galera” quando fazia as minhas colocações. Devo mesmo fazer parte do segundo ou mesmo do terceiro escalão da empresa e não me avisaram. Devo estar aqui por acaso. Isso explicaria essa indiferença.

Talvez, se aqui trabalhasse um bom fisiognomista, ele poderia dar seu parecer: “Olha, seu rosto é assimétrico, há uma diferença considerável entre os lóbulos das orelhas e a íris dos olhos, ou seja, essa sua característica peculiar faz desviar os olhares e o interesse sobre a sua pessoa...” Melhor seria, talvez, o veredicto de um astrólogo: “É o seu inferno astral. Está bem aqui, no seu mapa, veja.” Só assim, quem sabe, eu entenderia alguma coisa. Melhor deixar para lá – como se isso fosse possível.

Ontem liguei para um amigo. Combinamos de almoçar amanhã, no intervalo do trabalho. Ele gostou da idéia. Faz um bom tempo que não o vejo. Sempre andávamos juntos. Boas lembranças aquelas de acampamentos, viagens com amigos, shows de rock, rodas de chimarrão. Chegamos até a estudar juntos durante um tempo. Acho que estou precisando conversar. Ando meio solitário. Para não dizer totalmente só. Ó, já tá quase na hora da saída. Já me arrumo.

Vou passar no trabalho do Luciano. Foi o combinado. Espero na entrada. Estranho. Já passam quinze minutos da sua saída. Vou entrar e ver o que há. Oh, ele já saiu? Ele não comentou onde ia almoçar? Não?.... Como? Ele anda muito ocupado. Claro, eu entendo. Até logo, muito obrigado.

Só resta almoçar de uma vez e voltar ao trabalho. Qualquer lugar está bom, é bem melhor que ir para casa comer macarrão instantâneo e após tomar um café também instantâneo, ligar a tv e ter de assistir aos comerciais “engraçadinhos” das Havaianas ou mesmo presenciar a lavagem cerebral descarada das empresas de celulares, principalmente nesse período próximo ao dia dos pais. “Agora você pode ter exclusiva chamada com sons polifônicos”. J.S. Bach – músico do período Barroco - ficaria deslumbrado com essa “possibilidade”. Almoço sozinho mais uma vez, não me importo.

Volto ao trabalho. Só posso pedir a Deus que o tempo não pare. A manhã foi suficientemente custosa e demasiado cansativa para os sentimentos que estavam disponíveis naquele momento. Oh, parece que teremos mais uma reunião. Eu mereço.

Antes disso ligam da clínica veterinária para dar notícia do meu canário que estava doente. Informam que ele não resistiu. Não sabem precisar o que aconteceu ao pobre pássaro, porém “apostam” que foi algo relacionado ao frio: “Os mais sensíveis não suportam os dias frios”. Eu sinto que isso seja verdade. Pergunto se se importam em dar um destino ao seu pequeno corpo, eu não saberia o que fazer – Sim.

Começa a reunião. O segundo tempo. Gomes, Sara, Suzy e Sandra. Norberto. Quase tudo de novo. Agora, mais: concurso feminino – mais o Clóvis – para ver quem possui o celular mais modernoso. “O meu dá para colocar no braço que ele mede os passos e calorias durante a caminhada”. Muito útil. Que demais. Para mim chega!

Levanto e me dirijo à porta com a intenção de sair, de ir embora. Correção: não é intenção. Eu irei embora. Basta!

Nada. Eu repito: nada me desviará dessa intenção. Não existem pessoas nem portas suficientemente convincentes ou mesmo fortes para alterar meu trajeto agora. Alguns me olham, dois perguntam: onde está indo? Não respondo, somente lanço um olhar, é suficiente. Pensem o que quiserem. Dou uma última olhada para aquela sala e percebo que pouco vejo. As paredes e o teto são merecedores do meu último olhar. Não deixarão saudades.

Desço as escadas e caminho pelas ruas. Algo está diferente. Tento entender o que é e não consigo. Melhor assim.

Chego em casa, abro a porta. Olho com saudade, como se fizesse muitos anos de ausência. Não é o caso. Mas estou em casa. Pensei em usar o fogão à lenha. Lembro que Bernard, o canário, sempre me fazia companhia. Agora eu estava só.

Fiz fogo. Tanto quanto possível. Eu estava no comando e só dependia de mim. O fogo era vivo, como eu. Por um momento pensei em dançar primitivamente ao redor do fogo. Desisti. Mas... por que não? Dancei. Parei. Ri.

Convidei, ao redor do fogo feito por mim, meus amigos, irmãos e primos e infância feliz. Contei-lhes de minhas vitórias e conquistas pessoais. Dancei como nunca. Como num ritual maluco e sincero. Exorcizei meus fantasmas, expulsei minhas dores, temores e paixões sem futuro. Tudo à luz e calor do fogo feito por mim e somente por mim. Fiquei mais forte. Eu sou mais eu. Hoje, não sou mais vulnerável. Não tenho limites.

Dança. Lembranças. Risos.

Dias frios. Luz e calor. Noite adentro.

Danilo Hax
Enviado por Danilo Hax em 23/07/2014
Reeditado em 26/07/2014
Código do texto: T4894034
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