Pinel

A fome arrastou – me até a zona do porto , naquele dezembro de 1983. Dias ruins , todo mundo de cara fechada , um calor dos diabos , mas nas praias cheias de gente , o Rio de Janeiro em férias , jogando pelada e conversa fora na areia e caindo naquela água bonita e fria do mar .

Eu continuava a fugir dos médicos e da polícia . A Pinel , querendo me fazer de doido á força , por conta de desfilar pelado pelos corredores .Claro,ninguém me via , comida e remédio , nem pensar . Aí , pô , até Jesus Cristo esperneia . E a polícia ? Ora , negro , barbudo, esfarrapado , fedendo que nem um gambá , dois dias vagando debaixo dum calor daqueles , vestindo uma calça de pijama ,C e P pintados na roupa ? Pode pegar que é doido .

Também , na semana passada , tomei só três doses e quebrei um boteco e a cara do dono , lá em Madureira . Serviço completo : cabelo e barba.Mas fazer o que ? É o meu jeito de ficar bebum : uns ficam ricos de repente , outros ficam lindos , distribuem cantadas e colhem bofetões , outros choram . Eu , apenas saio quebrando tudo . Um doutor psicodoido lá da Pinel , falou numa tal de embriaguez patológica .Aí, metí – lhe a mão : Arnaldão doidão ? Então tome murro , seu cagão .

Mas o negócio agora é comer , jogar alguma coisa na prensa , lá dentro, para ela trabalhar direito e parar de devorar a mim mesmo . Daqui , deste lado da cidade ,vejo um mar onde ninguém toma banho , só navios velhos e apodrecidos, de casco sujo e fedorento , esquentando ao sol , boiando um junto do outro , feito patota de bêbados . Uma manhã arrastada , se desmanchando já no meio- dia . Comer que é bom , nada . As pernas recomeçaram a fervilhar e doer – seqüela da cachaça, disse aquela doutora que chamam de Joaninha Lennon, óculos de bicho-grilo na ponta do nariz e boca desbeiçada de gente ruim.

Parei diante do bar do Português . Dizem que rolava um carteado incrementado por lá e deveria ter comida sobrando.Pego a rua do oitão , olho pela janela e vejo um baita dum negão , ainda mais alto que eu , empalitosado ,seguro por dois sujeitos enormes feito armário de aço , paletós pretos abertos , óculos escuros , um tremendo berro na cintura de cada um : tiras da cabeça aos pés . Que cagaço , meu Deus ... a barriga roncou alto , mas eles nem perceberam , entretidos com o negão .

- Fala porra , cadê o Miguelito ? – perguntou o de gravata preta

- Já disse que não sei , não faço a menor idéia, cara .Estou almoçando tranqüilo e vocês chegam perguntando desse jeito por alguém que nunca vi , porra ! – O negão não dava mole . O de gravata listrada sapecou – lhe um soco no queixo ,que tirava até espírito obsessor , quanto mais informação. O cara mal virou o rosto , o outro , de gravata preta , plantou – lhe uma tapa no pé do ouvido , empurrou – o contra a parede , deu – lhe um chute no peito e como uma dança ensaiada, saíram do bar .

Ficou lá o sujeito, sozinho, cara quebrada, lambendo nos beiços o próprio sangue, um bom tempo. Depois, levantou- se, foi até uma geladeira detrás do balcão, tirou gelo, pôs no lenço e esfregou naquela cara escrota. Abriu uma gaveta da geladeira, tirou um pacote e gritou bem alto por Luciano. Devia ser um garçom, pois chegou depressa.

O cara ordenou embrulhar o almoço para viagem . Não o vi pagar . O Luciano entrou mudo e saiu calado . O negão pegou o pacote , colocou na sacola plástica entregue pelo garçom , olhou desconfiado pela janela e saiu pela porta de trás . Corri e fiquei observando por cima do muro .

Ele jogou o pacote na lixeira, retornou e saiu pela porta da frente, caminhando rápido pela rua, mas não o suficiente para escapar do carrão que subiu a calçada e o arremessou no espaço, num belo e verdadeiro salto mortal, pois deu uma cambalhota e caiu já mortinho da silva no asfalto quente, feito frigideira.

Olhei e pensei : estava lá num canto o negão morto e eu , o outro negão, olhando e me lascando de fome . Bom, pulei o muro , fui até á lata de lixo , peguei uma sacola plástica cheirando a carne assada e ainda quente ,escrito de caneta : Hernandez . Abri : uma caixa de papelão com o filé mignon mais bonito que já vi na vida,misturado com um arroz bem douradinho e uma macarronada pra lá de suculenta.No outro pacote , uma estatuazinha amarela ,de uma mulher segurando uma bacia com os braços levantados e com um tijolo de ferro chumbado nos pés, todo cheio de uns garranchos ,só consegui ler Jules Rimet ,o resto não deu , porque era estrangeiro e a fome não deixava .

Feia que nem o diabo a estatuazinha , mas brilhava mais que catarro em parede .Comi tudo feito um louco, bem ligeiro , bebi um bocado de água da torneira e pulei o muro de volta .Olhei o negão estirado no chão, atrapalhando o trânsito. Coloquei a estatuazinha de volta, no saco e sacudi tudo no mar, com toda a minha força . Ninguém come estátua.

Nota do Autor : Inspirado no roubo da Taça Jules Rimet (conquistada

definitivamente pelo Brasil, em 1970) e ocorrido em dezembro de 1983 .

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 15/06/2014
Código do texto: T4845692
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