Uma história de encanto e magia ocorrida em meio a muitos vermelhos
Naquela manhã, realizou seu sonho: tornou-se uma mulher de parar o trânsito. Teve essa certeza depois de parar o trânsito por ter sido atropelada por um caminhão (que transportava batatas para a cidade vizinha) e ser arremessada e voar por vários metros, até cair bem no meio de um cruzamento que estava sempre movimentado.
Sinal verde. Sinal vermelho.
Atirada ao asfalto, debaixo do sol que impiedosamente continuava jogando seus raios em cima de seu corpo cada vez mais cercado pelo sangue que surgia, já misturando com o suor que ainda brotava, decidiu usar seus últimos momentos de vida para aproveitar a atenção que recebia de toda a multidão que a cercava, curiosa, com seus olhares de pena. A moribunda sorria melancolicamente com os lábios que tremiam por estarem perdendo seus movimentos, e tentava identificar as formas em seu torno com os seus olhos cada vez mais escurecidos. Até que o escuro chegou. Sem estrelas. Como o céu poluído de sua cidade.
Sinal verde. Sinal vermelho.
Os bolsos da defunta foram revirados por mãos desconhecidas que não tinham nenhum outro objetivo além de encontrarem algum documento ou qualquer outro vestígio que revelasse quem era aquela vítima, onde ela vivia, para quem eles poderiam ligar para dar a triste e fatídica notícia! Acabaram por achar uma carteira carcomida, no mesmo bolso em que um pedaço de guardanapo amassado também se encontrava. Abriram a carteira. Seu nome era Jacinta.
Sinal verde. Sinal vermelho.
O corpo de Jacinta foi cercado, e os carros parados perceberam que não sairiam dali tão cedo. Fecharam todo o resto da rua e, como Moisés, tentaram abrir um espaço entre o mar de carros congestionados para que a ambulância pudesse passar.
Sinal verde. Sinal vermelho.
A ambulância chegou. O pronto-socorro era perto. Jogaram um lençol em cima de seu corpo e foi difícil colocá-la em cima da maca. O motivo? Era uma tarde de terça-feira.
Sinal verde. Sinal vermelho.
A ambulância saiu em disparada e as pessoas começaram a se dispersar. Era quase hora do rush. Tudo voltava à normalidade.
Sinal verde. Sinal vermelho.
O sangue foi retirado do asfalto. Era tão vermelho quanto o da maioria das pessoas. Mas tinha uma tonalidade feia. Não era um vermelho vivo cor-de-sangue-que-escorre-do-pescoço-de-belas-mulheres-suicidas-no-cinema, mas um sangue cor-de-sangue-que-escorre-do-porco-quando-seu-corpo-é-abatido-num-matadouro-cor-de-sangue-da-mesma-cor. E o sangue não combinava com o vermelho realmente bonito que se pintava no pôr-do-sol que começava.
Sinal verde.
Tudo que restou, após aquela tarde de muitos vermelhos, foi, no asfalto, embaixo dos carros, uma rachadura que ninguém percebeu. Como não era um bairro muito importante, a presença rachadura não se tornou um crime imperdoável.
Jacinta manteve os carros parados por seis sinais vermelhos. Inacreditável! Sua alma estava em paz.