IMPONDERÁVEL - Parte 3
(Continuação de IMPONDERÁVEL Partes 1 e 2)
No dia seguinte, passeando pela praça de mãos dadas com Lenira, viu uma placa de aluga-se.
A casa, com varanda, dois quartos, sala cozinha e banheiro, plantada no meio do terreno com oitões livres, jardim e quintal, tinha tudo para satisfazer um casal no início da vida de casados.
Acertaram o aluguel com o proprietário e trataram de fazer as pinturas, comprar os móveis e cuidar do enxoval.
O quarto da frente seria a oficina de bordados de Lenira, que assim ficaria ocupada durante o tempo em que Dulcino estivesse viajando.
Dulcino trouxe mudas de roseiras, de cores variadas e, pacientemente, preparou os canteiros do jardim que, rapidamente, virou referência na vizinhança.
Com menos de um ano, depois do feitiço, Dulcino e Lenira casaram na igreja do bairro.
Nos primeiros tempos, só felicidade.
Dulcino se revelou um marido exemplar, zeloso, que tentava adivinhar os desejos da mulher e como permanecia vendedor viajante, ligava todos os dias para falar com ela e lhe trazia um presente, cada vez que voltava para casa.
Lenira não cabia em si de contentamento, mas para que a felicidade fosse total, faltava um filho.
Cada vez que a menstruação atrasava um ou dois dias, Lenira em ânsia, acreditava estar grávida, até o dia em que Dulcino lhe deu a notícia decepcionante de que ele era estéril e que eles, jamais poderiam ter um filho, gerado a partir dos dois.
Essa revelação apagou o brilho dos olhos de Lenira...
Seu sonho de ser mãe, jamais se realizaria porque, para ela, o único homem do mundo era Dulcino.
Filho adotivo não é a mesma coisa e Dulcino não queria nem conversar sobre o assunto...
Os desentendimentos passaram a fazer parte da vida do casal, principalmente porque Lenira não queria se desfazer do enxoval de neném que bordara na esperança de um dia usar em seu próprio filho.
Depois dessa revelação, Dulcino foi aos poucos se modificando, a demonstrar um ciúme doentio...
Chegava de surpresa, no meio da semana, examinava a casa toda, até os armários, buscando o amante da mulher, que ele via em sonhos, mesmo nas noites em que dormia em casa.
O tempo foi passando e as brigas e reconciliações se acumulando até se transformarem em agressões físicas.
Depois, arrependido Dulcino pedia perdão e Lenira sempre perdoava e achava desculpas esfarrapadas para justificar os hematomas porque o amor que sentia pelo marido, só fazia aumentar e, diariamente, Lenira, em pranto, lembrava mais uma vez das palavras da bruxa quando lhe prevenira sobre os sofrimentos...
A convivência tornou-se insossa.
Dulcino já não fazia questão de voltar para casa, quando encerrava o expediente nas sextas-feiras, era grosseiro, estava sempre de mau humor e os passeios que faziam pela praça, nos finais de semana, foram rareando até que deixaram de existir...
O roseiral, abandonado, secou e morreu.
Lenira sofria e por causa disso, chorava todas as noites em que tinha que dormir só e por muita insistência da tia Silvia, resolveu que nas noites em que Dulcino estivesse viajando, dormiria com os tios. Menos nas sextas-feiras porque ficava esperando, muitas vezes inutilmente, que o marido voltasse.
Mas numa semana em que as encomendas estavam atrasadas, Lenira dormiu na casa dos tios e, pela manhã, quando seu Fonseca estava varrendo a calçada, chamou a sobrinha e perguntou, apontando o carro estacionado na frente da casa dela:
- Aquele não é o carro do seu marido?
Lenira correu para casa e encontrou o marido de pé, parado no meio da sala:
- Com quem você passou a noite, vagabunda?
Lenira respondeu com uma bofetada no rosto do marido que revidou com duas tapas.
- Se você estiver me traindo, eu vou descobrir. Você pode se esconder no fim do mundo, mas se eu souber que sou corno, você morre...
E com violência, empurrou Lenira que caiu e bateu com as costas na mesa do centro, desmaiando em seguida.
Dulcino saiu, batendo a porta da casa com toda força, entrou no carro e saiu sem rumo.
Por mais rápido que dirigisse, a imagem de Lenira, largada sobre a mesinha, não lhe saía dos olhos...
Alguma coisa na pista desgovernou a direção do carro que se precipitou no vazio de cima da ponte, batendo com toda violência nas pedras do riacho.
Com o carro e as roupas em chamas, Dulcino conseguiu se desvencilhar do cinto de segurança e mesmo sem ver mais nada, mergulhou nas águas turvas do riacho e, antes de perder os sentidos, viu pela última vez o sorriso cândido de Lenira, envolta num feixe de luz brilhante...
Acordou no hospital.
Alguém viu o desastre e chamou o resgate.
Apesar das queimaduras, ele não corria risco de morte, do terrível desastre, restariam as profundas cicatrizes e a cegueira irreversível...
A noite chegou e mesmo com a luz apagada, a porta da casa de Dulcino e Lenira permanecia aberta.
Intrigado com o fato, seu Fonseca foi ver o que estava acontecendo e encontrou a sobrinha inconsciente, deitada sobre a mesinha, sem poder se mexer.
O resgate foi chamado e no mesmo hospital onde Dulcino estava, Lenira recebeu o diagnóstico da sua tetraplegia.
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Por muitos anos, os dois foram vistos na praça...
Dulcino, cego com andar trôpego, empurrando a cadeira de rodas em que Lenira ficara presa, envoltos na mesma luz verde do encantamento que tornara possível aquela efêmera e eterna união.