IMPONDERÁVEL – Parte 2
(Continuação de IMPONDERÁVEL – Parte 1)
Pela manhã, logo cedo, Lenira pegou a caixa com as mechas dos cabelos e foi ao mercado central procurar o jarro...
O que estava na primeira prateleira, exatamente na altura do olho, era uma réplica dos vasos canópicos, daqueles usados para guardar as vísceras dos faraós, quando os embalsamadores egípcios preparavam as múmias.
O vaso era de cerâmica, pintado de preto, sem alças, com a tampa parecendo uma xícara invertida que se encaixava perfeitamente na boca do vaso.
Vitoriosa com o seu achado e sem passar em casa, Lenira foi direto para a casa da bruxa.
O ambiente não podia ser mais indicador das atividades da velha, que estava tão suja quanto na véspera.
A casa parte de pedra, parte de taipa, era apenas um cômodo, com o fogão à lenha no meio do salão.
Rasputim, o gato magro de pelo negro, sem brilho, apenas levantou a cabeça e seguiu Lenira com os olhos verdes, brilhantes, prescutadores, sem se levantar dos panos sujos enrodilhados sobre um saco contendo folhas secas de onde ele saía apenas para caçar as baratas, os ratos ou as lagartixas com que se alimentava...
Lenira sentou num banco instável, ao lado da mesa sebenta sem forro, sob a janela, cujas fendas deixavam passar a claridade fosca do dia, para tornar o ambiente mais lúgubre e a brisa suave, incapaz de apagar a vela, cuja cera derretida escorria por um dos lados da garrafa feita castiçal.
O chão era de terra batida, descuidado, cheio de pequenos buracos que não permitiam o perfeito equilíbrio do banco. Lenira colocou o pacote sobre a mesa.
Imediatamente Rasputim levantou-se da cama improvisada e veio conferir o conteúdo do pacote porque, bem podia ser algo comestível, a fim de variar a monotonia de sua dieta.
Dona Olga, que nunca soltava a vara de marmelo, deu uma pancada nas costelas do gato que, soltando um miado estranho, saltou imediatamente de cima da mesa, e voltou para enrodilhar-se em sua cama, fazendo o som característico de folhas secas pisadas.
Lenira, com um sorriso disfarçado no canto da boca, imaginou a cena onde aquela vara, entre relâmpagos coloridos, se transformava na vassoura, para a bruxa voar em noites de lua cheia, quando ia se encontrar com as outras bruxas na mataria densa que se formara no antigo canavial do engenho do visconde, no entorno da cidade.
Dona Olga, foi até o canto onde havia uma cama, afastou os panos feitos cortinas e retirou do que parecia ser um buraco na parede, um pano pesadão, escuro, talvez veludo, bordado com folhas douradas, uma vasilha de metal e uma caixa, com tampa.
Lenira sentiu um forte arrepio quando dona Olga colocou o pano, que era uma capa com capuz, sobre os seus ombros e sentiu-se nauseada pelo cheiro acre que a inundou.
Da caixa, sobre a mesa, dona Olga retirou alguns vidrinhos, contendo substâncias, ora em líquido, ora em pó, que foram sendo despejadas aos poucos dentro da vasilha, enquanto resmungava palavras ininteligíveis, talvez em dialeto russo..
Por longo tempo, a velha mexeu a mistura, às vezes no sentido horário, às vezes no sentido anti-horário até que em dado momento começou a sair da mistura, fumaça com cheiro nauseabundo.
- Tire os sapatos, pegue o cabelo dele, ponha debaixo do seu pé esquerdo e firme o pensamento no seu homem.
E a bruxa despejou sobre o pé de Lenira, o líquido denso, verde escuro, frio, muito frio, que escorreu por entre os dedos, embebendo o chumaço de cabelo.
- Sem tirar o calcanhar do chão, bata três vezes no cabelo e pense no nome dele. Agora, sem falar, repita comigo três vezes:
- Fulano, você nunca mais vai ter outra mulher além de mim...
A bruxa colocou um pouco de cinza do fogão no vaso canópico, depois a mecha do cabelo de Dulcino, despejou por cima um pouco do líquido da vasilha, colocou a mecha do cabelo de Lenira, o resto do líquido da vasilha de metal, apanhou a terra do chão embebida com o líquido gosmento que, misturado com mais cinza do fogão, acabou de encher o vaso que foi tampado e lacrado com cera derretida, retirada da garrafa sobre a mesa.
- Tire a capa e lave seu pé nessa vasilha. Agora vá lá fora e jogue a água na rua.
Quando Lenira voltou para dentro da casa, a bruxa velha disse:
- Essa noite, é a véspera da lua nova. Noite escura. Enterre esse vaso, em pé, num canto onde ninguém encontre. Agora vá...
- Quanto lhe devo?
- Você não me deve nada. Se quiser me dar um presente eu aceito qualquer coisa, menos dinheiro.
Lenira tirou do dedo o anel de pedra que recebera de Dulcino nos primeiros dias do namoro, colocou no dedo da velha e com o coração aos pulos, voltou para casa, sob o sol do meio dia. Parecia que, a casa passo, o jarro ficava mais pesado...
Como podia um jarrinho de louça, com menos de 15 cm, pesar tanto?
À noite, silenciosamente, Lenira fez um buraco bem fundo, sob o muro do quintal e enterrou o vaso.
No dia seguinte, para não chamar atenção, colocou um bocado de entulho sobre a terra revolvida.
Naquele dia, ainda durante o almoço com o cliente, Dulcino começou a passar mal...
Na noite silenciosa, parecia que Dulcino era o único hóspede que estava acordado...
Sentindo-se cansado desde a hora do almoço, Dulcino não trabalhou o resto do dia. Parecia que a comida daquele restaurante, tantas vezes frequentado, não lhe fizera bem...
Logo que escureceu, deitou-se sem jantar e dormiu profundamente. Sono inquieto, sentindo-se sufocado...
Num dos sonhos, se viu dentro de uma gaiola, num canto escuro, algemado, sem poder se mexer e em sua frente, dançavam formas estranhas, sons ininteligíveis, murmúrios de muitas vozes atormentadas...
Lenira aparecia e desaparecia e quando estava em sua frente, mostrava as chaves das algemas...
Dos olhos dela, saiam feixes de luz verde, brilhante em sua direção...
Acordou sobressaltado.
Bebeu água e deitado, vomitou algo escuro, viscoso, fétido que sujou o chão, o pijama e o lençol da cama.
Passava pouco da meia noite no mostrador brilhante do relógio elétrico sobre a mesinha de cabeceira.
Sem coragem para se levantar, adormeceu e sonhou outra vez com Lenira que lhe estendia as mãos em sinal de súplica e todo seu ser ansiava por estar junto a ela...
Entre dormindo e acordado pensou que nunca se apaixonara e que aquela sensação de dependência, ao mesmo tempo em que assustava, proporcionava alegria porque, apesar do namoro ter perdido o encantamento, Lenira reunia todos os pré-requisitos que ele elencara para que uma mulher viesse a ser sua esposa...
Sentiu-se o pior dos homens por ter enganado a sua namorada por tantas vezes e decidiu que daria um jeito na sua vida...
Iria casar-se com Lenira...
Viver uma grande e deliciosa história de amor que não teria fim e enfim, dormiu tranquilo, decidido a noivar nesse mesmo dia.
O sol já estava alto quando Dulcino acordou. Estava bem disposto, com fome e, interessante, nem sinal do vômito da noite anterior.
O chão do quarto, o pijama e o lençol estavam tão limpos quanto estavam quando ele fora se deitar.
Logo depois do café, com muita má vontade e completamente desconcentrado no que fazia ou dizia, visitou um cliente e pensando em dispensar o restante das visitas do dia, foi comprar as alianças.
Por todo o dia, a figura de Lenira não saiu dos seus pensamentos, nem parou para almoçar e só descansou quando estacionou o carro na praça em frente à barbearia e oficializou o noivado, apesar da desconfiança do tio, seu Fonseca, que não dava muito crédito às intenções do vendedor mulherengo.
Nessa mesma noite, marcaram o casamento.
– Continua em IMPONDERÁVEL - Parte 3