Miséria
O relógio com cristais swarovski me encarava ameaçador.
Os minutos, implacáveis, corriam em direção ao momento em que eu teria que ir.
A hora de voltar começava com um sensação incômoda, evoluía para a angústia e chegava à beira da insanidade.
Olhei as unhas perfeitas, pintadas de um rosa pálido e me perguntei mais uma vez porque escolhia sempre a mesma cor.
“Cinza de rosas”. Uma cor idiota de um livro de amores impossíveis lido na adolescência e que se repetida sistematicamente ano após anos nas unhas que brilhavam na minha frente.
Odiava aquela cor, assim como odiava o cabelo liso, preso, impecável.
Paguei a minha conta sem ver os dígitos e entrei no carro confortável.
Outra noite movimentada e mais pessoas pagando para saber mais, aparecer mais, valer mais.
Assim que entrei no salão reparei que estava irretocável como sempre.
Nenhum copo fora do lugar. Luzes, flores, arranjos, tudo beirando a perfeição. Nada, absolutamente nada que remotamente permitisse qualquer alteração e assim como havia acontecido em tantas outras vezes, nenhuma escolha de tons, nenhuma opinião, enfim, nenhum toque pessoal.
No meio do cenário caríssimo, circulando com seus copos brilhantes, os mesmos espectros de sempre.
Homens de meia-idade ostentando o que julgavam ter de melhor em seus carros absurdamente caros e ridiculamente possantes.
Mulheres construídas em mesas cirúrgicas e em horas de produção.
Jovens com olhos brilhantes, drogados pelo glamour conquistado com muitas horas em camas estranhas.
Um circo. Uma cena dantesca regada a vinho bom e nenhuma moral.
Como sempre, regurgitei meu melhor sorriso, reuni forças e me mostrei.
Caras e bocas me receberam enquanto eu me movimentava naquela cena digna de um pesadelo alucinógeno.
Em poucos minutos eu queria fugir. Na primeira hora, queria morrer.
Busquei sanidade nas bolhas da taça de “krug”, mas recuei quando elas começaram a gritar desafiadoramente: liberdade, liberdade! Sua covarde!
Pensei em me perder nelas, mergulhar na bebida até esquecer tudo, mas naquela noite, para aquela intensidade de dor eu precisava de uma droga mais forte.
O barulho do salão aumentava na proporção que minha presença era exigida.
Eu me movia entre corpos, perfumes, brilhos e maquiagens. Nada me pertencia, nada havia de mim ali.
No meio do caos vi os olhos questionares assim que passaram pela porta.
Eles me prenderam instantaneamente.
Divertidos e ao mesmo tempo compreensivos, me perguntavam “por que”.
Eu sorri sem muita convicção. Não havia resposta, apenas o mesmo teatro de sempre, tive vontade de gritar.
Ele observava meus movimentos, sabia dos meus pensamentos e me incomodava à distância.
Ele, uma brincadeira, uma fuga do tédio no meio do nada, havia se tornado o algoz dos meus dias.
Ele que havia me visto em um passado absurdamente presente.
Trêmula, nua, inconsequente, maravilhosamente solta nos braços e pernas que me prendiam e também me libertavam.
Uma única vez. Por algumas horas. Para o resto da vida.
A voz cristalina anunciou o momento. Hora da apresentação.
Mais uma “obra de arte” vulgar e escandalosamente cara.
Sorri e deslizei no meu vestido dourado pronta para o discurso.
Meu “artista” favorito e agora também protegido, me oferecia seu melhor sorriso imbecil.
Falei as palavras de sempre, para as caras de sempre e pelos motivos de sempre.
Os olhos dele, como lâminas, não saíam de mim.
E quando tirei a seda prata que cobria a obra ridícula, engoli a lágrima ácida das minhas escolhas.
Patética. A pintura e eu. Não necessariamente nesta ordem ou intensidade.
A noite estava apenas começando e prometia a satisfação indiscutível de todo tipo de ego.
Eu me recolhia.
Em meio ao brilho ilusório da minha vida vazia eu trocaria tudo pela autenticidade escrachada que havia vivido com ele por tão pouco tempo.
A música ficou mais alta. Eu me movimentei entre pessoas desconhecidas mas profundamente servis.
Passei a evitar os olhos que me seguiam. Os dele.
Eles continham a promessa de uma vida plena mas que jamais seria a minha.
Novas taças passaram a circular e eu acolhi a que me era servida.
Amarga, densa, terrivelmente acusadora.
O champanhe, ao menos ele, naquela cena tinha algum valor.
E exibindo o sorriso sarcástico dos que fazem as opções erradas eu me mostrei poderosamente soberba e bebi silenciosamente mais uma vez da minha covardia e da minha resignação.