A MOÇA E OS PEIXINHOS DOURADOS

Ela não teve pai e perdeu a mãe no momento em que nascia, vítima de complicações no parto. Laura foi criada, com proteção e muito mimo, por uma tia solteira, sem filhos e rica, que morreu quando a moça completava dezoito anos. Herdou, entre outros bens, a casa alaranjada de dois pavimentos, no alto da serra, ao lado de uma enorme e violenta comunidade.

Porque não se sentia segura entre as pessoas, porque tinha medo de conviver, ao apropriar-se definitivamente da casa, mandou demolir o segundo pavimento e, providenciando os devidos reforços estruturais e adaptações, construiu, sobre toda a extensão do imóvel, dentro de quatro paredes de concreto, um imenso aquário. Havia apenas uma janela que servia de de passagem para ela e o sol. No interior, uma escadinha de metal, portátil e desmontável possibilitava o acesso da tal janela, muito alta, ao piso. Era como se fosse uma caverna, cercada por todos os lados e de cima a baixo pelas águas do aquário, salpicadas de graciosos, delicados e pacíficos peixinhos dourados, que pairavam para lá e para cá, esplendorando o recinto de encantamento absoluto. O espaço que comportava a moça era minúsculo, em formato cúbico, suficiente para seus movimentos suaves, seus rodopios de delírios, de braços abertos, bailando, bailando ao compasso de canções imaginárias. Chegava-se ali somente por meio da escada estreita, também de metal, avulsa, fincada na grama do jardim, rente à parede.

Ela passava horas de seus sereníssimos dias aspirando a existência silenciosa dos peixes, como se luz e cor de sua própria. Nada mais queria, nem coisa, nem gente. Não possuía vaidades, desejos complexos, vergonhas, ressentimentos, ira. Não conhecia a solidão. Só queria a eles, os peixinhos dourados, entre vegetais aquáticos e pedrinhas coloridas, cintilantes como estrelas no céu. O sol ameno que vinha de fora iluminava as águas pululantes daquelas vidinhas singelas e lindas, que pareciam dançar diante de Laura. Ela girava o corpo com mansidão, meneando, suave, as pontas da saia rodada, como se para recompensá-los por tantas alegria, leveza e paz.

A tia a criou assim, afirmando e demonstrando que existir é bonito, que o mundo que Deus ofertou a todos é encantado, repleto de maravilhas. Na verdade, não era bem desse jeito que a moça o percebia quando obrigada a estar com pessoas, sempre agressivas, mentirosas, assustadoras. Notando sua insatisfação na convivência com os outros, a poderosa guardiã providenciou-lhe mestres exclusivos; conseguiu concluir o ensino médio longe da realidade da rua. Suas amigas eram as fadas dos contos europeus; os irmãos, anjinhos de cabelos louros e cacheados que enfeitavam, tocando harpas, as imagens dos santos. Então, quando se viu sozinha na vida, teve a ideia de se proteger cercada pelo grande aquário.

Mas, lamentável, ela não estava tão protegida assim. Numa linda manhã de sábado, acordou meio confusa, em seu abrigo dentro da extensão de vidro, perto das adoráveis criaturas aquáticas. Pegou no sono sem notar, na noite anterior. De repente, uma bala desvairada, perdida invadiu sua paz, entrando pela janela. E depois outra. E muitas, muitas outras! Havia um tiroteio na comunidade vizinha! As balas despedaçaram o aquário impiedosamente! As águas fartas avançaram contra a janela, levando para fora tudo o que havia à frente. Em pouco tempo, despejados e mortos sobre cacos de vidro e sangue na grama do jardim, a moça indefesa e vários de seus pacíficos peixinhos dourados. A realidade da rua rompeu a redoma de sonhos.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 24/02/2014
Reeditado em 24/02/2014
Código do texto: T4704076
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