O mundo dos homens

Acordei tarde na manhã do último dia no litoral. Tentei dormir mais, mas acabei levantando e fui até a cozinha. Eu estava só no apartamento, mas deixaram-me um pote com um croissant de presunto e queijo e um de manteiga de avelã. Eram dois enormes croissants e quase não consegui comê-los, tonta de sono; junto ao pote havia um bilhete explicando que foram cortesia da dona do café e desejando boa viagem.

Fiquei algum tempo sentada digerindo a comida e os sonhos que tivera durante a noite. Não faziam sentido e começaram a me fazer mal ao estômago, então fui tomar um banho frio.

Arrumei minha mala e deixei tudo pronto para partir, tomei um remédio para a indigestão e resolvi dar uma última volta com minha câmera e meu dinheiro. Saí e andei duas quadras até o beco do café Roma Mia; era meio dia e o sol estava insuportável. Entrei no recinto fresco procurando pela dona, mas só seu jovem marido italiano estava, passando um pano no balcão.

- Olá. A Mônica está?

- Buongiorno! Não, ela saiu.

- Ah. Pode avisá-la que Maria de Lourdes passou aqui para agradecer imensamente os croissants, por favor?

- Mas é claro.

Voltei à rua escaldante. Era uma quarta-feira do fim de janeiro e já não havia muitos turistas, o que tornava o deslocamento de pedestres na Avenida Brasil bem menos irritante. O trânsito continuava lento, com os grandes ônibus de turismo estacionados aqui e ali e muitos carros argentinos e paraguaios. Passei pela sorveteria italiana (havia muitos italianos no sul) procurando pela tabacaria, contente por ter guardado todo meu salário de dezembro para as férias.

Encontrei a loja adiante. Um garoto tatuado sem camiseta e com skate comprava seda e enquanto o vendedor atendia-o dei uma olhada nos bonitos artigos de decoração, facas, chapéus, cachimbos e charutos.

Gostei de um avião biplano amarelo pendurado no teto, e quando o menino terminou a compra pedi que o vendedor o embrulhasse para meu irmão. Os vários barcos em suportes de madeira lembraram-me João, e decidi levar um barquinho junto com um lindo estojo de três charutos cubanos para fumarmos juntos quando eu voltasse. Muitas das coisas da loja pareciam com ele, e precisei controlar o estúpido impulso feminino de levar tudo.

Escolhi também um moedorzinho de café para meus avós, e pedi para ver os canivetes suíços. O homem tirou tranquilamente vários modelos.

- São o modelo legítimo do exército.

- Muito bonitos. Posso ver este?

- Certamente. Mas ele é o mais simples. Traz a faca, uma lixa, um palito e uma pinça.

- É perfeito.

Manuseei com cuidado o pequeno instrumento em vermelho com o brasão da cruz suíça, testando o fio no polegar. Meu pai costumava ter um canivete daqueles grandes, bem como facas de caça, nos seus dias menos curitibocas.

- Vou levar esse.

- Presente?

- Não.

Ele me deu o preço e paguei, feliz em gastar quase todo meu dinheiro com bom gosto. Entregou-me a sacola cheia de presentes, e o canivete dentro da capinha de couro, que guardei em minha carteira de mulher.

- Desculpe, a câmera é analógica? - o homem perguntou polidamente.

- Ah, sim.

- Deve ter custado uma nota.

- Na verdade, era do meu pai. Mas é maravilhosa. Não confio em eletrônicos.

- Não se vê muitas moças como tu por aí. É um elogio - apressou-se.

- Obrigada. Mas eu conheço algumas.

- Sei. Ainda assim, não acho que comprem canivetes. Ao menos aqui eu só vendo pra homens sérios e durões, não pra muitas meninas.

Imaginei com certo orgulho muitos Joães frequentando a loja. Ele decerto iria gostar das minhas compras, e eu não via a hora de mostrar o canivete suíço. Despedi-me do vendedor e saí de volta à avenida. Decidi que seria bem melhor voltar pela beira da praia e tomei uma das ruazinhas que davam no mar. Passei por uma loja de bebidas e depois de alguns passos voltei e entrei. O balconista cumprimentou-me e me deu alguns minutos para olhar as cervejas artesanais antes de chegar sorridente.

- Uma ótima cerveja inglesa - comentou a respeito de uma garrafa que me interessara. - Um pouco forte, mas muito boa.

Não respondi que gostava das fortes, e menti que era para meu pai. Eu tinha pensado em levar algo para ele dali, mas minha madrasta provavelmente arrancaria minha cabeça. Ela odiava cerveja na mesma medida em que eu e ele gostávamos.

- Se quiser uma sugestão, leve essa aqui pra você. É à base de frutas vermelhas, tem quase a textura do espumante, e é pra tomar numa taça de vinho tinto com gelo. As moças gostam bastante.

Quanta viadagem. Provavelmente a tal cerveja frutada iria como refrigerante numa mesa com minhas duas melhores amigas. Mas pensei em levar as duas cervejas para abrir a noite em que mataria as saudades delas no final de semana. Faltava comprar algo para o Panzarini, rei dos filhos da puta, meu melhor amigo, mas eu tinha em mente que ele merecia ganhar "O Lobo do Mar" e isso poderia ser comprado na nossa cidade. O moço guardou cada garrafa em uma sacola comprida e fina de presente e eu paguei com minhas últimas notas grandes suadas enquanto trocamos uma conversinha de elevador sobre o clima e a estrada.

Segui reto até chegar ao calçadão rente à areia. Percebi que estava andando muito rápido e parei. Não tinha necessidade de ter pressa, não agora. Forcei meus nervos a caminharem mais devagar. Alguém fizera uma imensa escultura de areia multitemática - havia uma cabeça de apache, um Cristo Redentor e uma Pietà, tudo no mesmo contexto. Um homem com a careca queimada e pose de escultor a guardava, junto a uma caixa de doações com as palavras "Obrigado" e "Grazie". Mais um italiano. Tirei duas fotos da escultura com minha câmera, mas não deixei dinheiro, estava sem moeda.

- Desculpe, amigo - falei e segui sob o olhar di rimprovero do sujeito.

Estava muito quente, o ar e o mar estavam parados e o sol era tão forte que os morros cobertos de mata atlântica pareciam esbranquiçados à vista. A luz refletida pela água fazia meus olhos doerem. Parei num quiosque para uma cerveja.

- Tu já é de maior, né, moça? - perguntou a mulher gordinha e corada.

- Sim. Já tenho vinte. - Sorri e ela devolveu junto com minha lata e meu troco. Bebi uns goles grandes e que desceram gelando meu corpo, e sentei num banco com minhas compras.

Havia agora na praia metade do número de guarda-sois coloridos do que uma semana antes, o que mesmo assim era bastante. Os moços descalços de pele castigada carregavam suas mercadorias pra lá e pra cá pela areia, gritando suas ofertas. Cerveja, Coca, água! Sanduíche natural, salada de frutas! Um surfista loiro saía do mar como os soldados deviam ter desembarcado no Dia D, marchando no raso e jogando o cabelo para umas meninas boazudas que tomavam sol e mexiam nos seus celulares. Algumas crianças correram espalhando água sobre os corpos alaranjados das moças, que as encararam com a dignidade ferida. Um barco pirata turístico, um veleiro com o símbolo de uma construtora que tomava conta da cidade e alguns caiaques navegavam, e ao norte havia asas-delta perto do topo do morro.

Terminei a cerveja, tirei da lata o anel com uma coroa para guardar e joguei-a fora. Estava do lado de uma barraca de milho e churros. Eu gostava dos dois. Lembrei que meu pai dissera uma vez que milho é pra homem e churros é pra mulher, e só criança come dos dois, e isso havia me deixado confusa e com medo de nunca vir a gostar só de churros. Pedi um doce para minha irmã à dona da barraca.

- Que tristeza ir embora hoje - pensei alto observando o azul-esverdeado do mar, e surpreendi-me com a nota real de tristeza na minha voz.

- És de onde?

- Curitiba.

- Bem, lá também está calor - comentou democrática.

- Sim. Mas não se toma sol por lá. Todos correm o tempo todo.

- É uma cidade em que as pessoas trabalham muito, mesmo. Espero que faça uma boa viagem.

- Muito obrigada.

Voltei ao apartamento sem ânimo. Mas devia ser o calor.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 31/01/2014
Reeditado em 31/01/2014
Código do texto: T4671784
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