O “amigo”

Perder um amigo é como perder um pulmão. Era nisso que Clara pensava ao caminhar para casa. Um nó na garganta fazia com que andasse mais rápido. Tinha somente 15 anos, mas sentia o que era dor naquele momento. Ao entrar em sua casa, ela correu par ao quarto e deixou que as lágrimas finalmente jorrassem copiosamente. Sua mãe entrou no quarto chamando-a para almoçar. Mas ela não sentia fome e disse: não quero, mãe.

A mãe, visivelmente preocupada, se dirigiu ao marido: vá ver sua filha. Ela disse que não quer almoçar e ouvi que a voz estava embargada. Algo aconteceu e ela está chorando. O pai, doce como o mel, bateu na porta do quarto da filha. Ela abriu e deu um abraço no pai, que se preocupou com o estado dela e perguntou o que aconteceu. Ela respondeu que a vida era um inferno e que preferia nem ter nascido. Que foi um aborrecimento no colégio. Ela teria que voltar à tarde, mas avisou ao pai que não tinha condições emocionais para isso.

O pai, que era um homem calado e muito sensato, disse à esposa que deixasse a menina quieta no quarto, pois houve algum aborrecimento na escola e ela nem voltaria lá hoje.

Clara ainda chorou por muito tempo. Tirou sua roupa, foi à cozinha, pegou um copo de refrigerante e voltou ao quarto, onde acendeu um cigarro e pensou nos últimos 2 anos, tempo em que ela conhecia Roberto, seu melhor amigo.

Era um curso preparatório para ingressar em uma escola federal. A escola nem a interessava muito, mas a liberdade que teria, pois estava cansada das rígidas normas de conduta do colégio de freiras, onde sempre estudara. Lá ela conheceu Roberto e logo se tornaram amigos de infância. Ele era mais velho do que ela, que tinha 13 anos (ele devia ter 16 ou 17). Ela sempre foi uma ótima e fidelíssima amiga e logo viraram parceiros para tudo.

Aos 14 anos ela conseguira entrar na escola federal, mas ele não. Ela ficou arrasada e todos os dias ia à secretaria da escola ver se alguém desistira, pois ele tinha condições de usar esta vaga para se matricular. E acabou ficando conhecida da moça que trabalhava nessa área. Um dia, ao chegar, foi logo informada de que alguém desistiu e que ela poderia avisar ao amigo. Clara correu até um telefone público e ligou. Mas ele somente poderia comparecer no dia seguinte. Ela implorou à funcionária que guardasse essa vaga para o amigo.

Quando ele chegou, ela estava esperando para levá-lo à secretaria. Ele conseguiu a vaga e ela ficou radiante. Os dois amigos estudariam juntos, mas em cursos diferentes, o que em nada alterava a amizade, pois em todos os intervalos estavam lado a lado conversando. A esse casal de amigos juntou-se um outro casal, Maurício e Alice, que eram tão amigos quanto eles e os quatro se tornaram inseparáveis. Somente amizade, nunca mais do que isto, unia-os. Todos os dias ela ia à casa dele, onde ficavam conversando horas a fio. Ele tinha uma namorada, um pouco mais velha do que ele, mas não criava problemas já que era óbvia demais a amizade verdadeira.

Oh, bons tempos, pensou Clara, ao enxugar as lágrimas e acender outro cigarro. Como tudo ruiu daquela maneira sórdida e triste?

No ano seguinte, já com 15 anos, a amizade perdurava, completamente inalterada. Roberto sofreu um acidente que o fez perder o dedinho do pé. Para ela foi um caos. Ele de bengala e ela ao lado, nos intervalos, na entrada da aula, na saída. O irmão dela tinha bons contatos com um famoso cirurgião plástico de outra cidade e ela pediu que ele servisse de ponte para a cirurgia que o amigo teria que fazer. Não faria de graça, a família dele tinha dinheiro, mas o cirurgião era de difícil acesso.

Tudo acertado, ele viajou e fez a cirurgia. Ainda se restabelecendo, andava de bengala. Ela o esperava, naquela manhã, para irem embora juntos. Só de pensar que ele poderia escorregar naquela rampa a deixava apavorada. Estava ela e Alice, esperando pelos dois amigos. Ele desceu e ela abriu um sorriso, que logo ficou congelado em seu rosto e se desfez. Aos gritos, Roberto dizia que nunca mais a queria ver, que tomara que ela morresse, que era falsa. Enfim, tantas foram as ofensas que ela não conseguia se lembrar dos detalhes. Somente ficou gravado em sua alma o quanto o ser humano é injusto, pois ele nem se deu ao trabalho de dizer do que ela estava sendo acusada.

Não conseguiu dormir e nem comer. A tristeza e a sensação de injustiça não permitiram que relaxasse. Seus pais estavam preocupados, mas se controlaram e deixaram-na em paz.

No dia seguinte, sem condições de ir à aula, se dirigiu para um jardim onde sabia que estariam seus amigos. Ali estava a outra amiga, apavorada com o que houve. O quarteto se desfez e elas nem sonhavam que as mesmas ofensas seriam dirigidas à Alice.

Um amigo de Clara, já falecido, disse que não permitiria a continuidade daquele absurdo todo, pois era testemunha da sinceridade das duas, que não admitiam qualquer palavra que fosse ofensiva aos grandes amigos. Em tempo, Maurício também tinha uma namorada, também mais velha do que ele e que se dava bem com as duas. Era uma amizade sólida e pública, sem maiores implicações ou problemas.

Esse amigo levou-as ao colégio e soube que Maurício estava no ginásio de esportes treinando, pois era jogador de basquete. Lá, ao se dirigirem à ele, ficaram pasmos, pois Maurício ofendeu Alice do mesmo jeito que Roberto fizera com Clara. Mas e o motivo? Alguém, que a mãe de Maurício disse ser uma amiga dele, foi à casa dos dois e contou às respectivas mães que os dois fumavam maconha. Isso transformou a vida deles em um inferno. Como a palavra usada foi “amiga”, cada um deduziu ser sua amiga. Maurício julgava ser Alice e Roberto achava que foi Clara. E não deram, nunca, o direito de defesa.

Isso arrasou ainda mais a Clara, pois ela jamais moveria um dedo para prejudicar seu grande amigo. Por ele seria capaz de mentir, assumir qualquer culpa em seu lugar, pular na frente de um revolver. Enfim, como ele achou que ela poderia ter feito semelhante coisa? Que amizade é essa em que falta confiança? Se fosse o contrário, ela o questionaria antes. Não acreditaria que o amigo fosse capaz de um ato indigno contra ela, para quem amizade é coisa sagrada. A tristeza e a decepção se uniram dentro do coração dela e o despedaçou.

Não mais se falaram. Passavam um pelo outro como se nunca se tivessem visto. Mas ela sentia uma ponta de tristeza. Ser chamada de falsa, desleal, não poderia aceitar.

Um ano se passou. Estavam Alice e Clara no centro da cidade quando encontraram aquele mesmo amigo que tentou ajudá-las. Estavam passeando, comprando discos de rock, quando Maurício chegou, beijou as duas meninas e começou a conversar. Clara não se conteve e perguntou: Mas você está falando conosco? O que houve? Ele disse que haviam descoberto que quem fez isso foi a namorada dele na época. Eles terminaram o namoro e ela tentou reatar. Por fim, apelando, ela tirou toda a roupa e ele a rejeitou, o que feriu seu ego e a fez procurar as mães dos dois e contar sobre a maconha.

Clara ficou muito feliz. Finalmente a verdade apareceu. Será que Roberto a procuraria? Mas isso nunca aconteceu.

Anos se passaram e Clara estava passando as férias no apartamento do irmão, em outra cidade. Ela decidiu que não poderia continuar assim. Se a inocência dela foi provada, o amigo devia ter lhe procurado. Resolveu que não ia telefonar, escreveria uma carta. E assim o fez. Uma linda carta, onde dizia sentir falta de uma amizade tão sincera e pura, que não queria que a mágoa destruísse tudo. Mas não obteve resposta. Isso a entristeceu. Que pessoa é essa? Que arrogância! Quem ele pensava que era? Triste descobrir que gastara amizade com quem não devia. Dera pérolas a um porco.

Clara foi para a universidade e mudou-se de vez para a cidade onde o irmão vivia. Em uma de suas vindas à cidade natal, estava na rua quando Roberto passou por ela. E aquela cena clássica aconteceu: ambos olharam para trás após passarem um pelo outro. Mas não houve o menor jeito de aproximação.

Ela se casou, teve filhos e foi morar em um condomínio onde tinha por vizinha e amiga ninguém menos do que uma prima dele. A amiga lhe disse que ele havia se aposentado por ter adoecido, morava na rua ao lado, etc.

Quando o pai dessa amiga morreu, Clara passou o dia todo (e era seu aniversário) no velório. Ele estava lá. Ela desceu as escadas da capela e foi para longe da visão dele. Ainda doía. Quando ela olhou para cima, ele havia sentado em direção a ela, que o ignorou.

O tempo passou e ela e o marido levavam a filha ao colégio no mesmo horário em que Roberto fazia caminhada. E os três paravam na mesma banca de jornal. Ela nunca sequer olhou para ele. Era um estranho, não foi jamais um verdadeiro amigo, duvidou da sinceridade e lealdade, qualidades que ela muito prezava, principalmente em uma amizade.

Nunca mais Clara teve outro amigo com um laço tão forte. Pelo contrário, desde os 15 anos, o cinismo passou a fazer parte de sua vida. Plagiando o Cartola:

Ouça-me bem, amor/Preste atenção, o mundo é um moinho/Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho/Vai reduzir as ilusões a pó. Preste atenção, querida/De cada dor (amizade) tu herdarás só o cinismo/Quando notares estás à beira do abismo/Abismo que cavaste com os teus pés.

Substituindo “amor” por “dor”.

Hoje ela já passou dos 50, mas jamais esquecerá a dura lição que recebeu da vida, mesmo que acabe incorrendo em erros semelhantes. Ela pensa: Que mundo doido! Ninguém sabe mais ser amigo. Isso é triste. Eu sou cínica e desconfiada no que se refere a relações humanas. E, que ninguém saiba, ainda acho que perder um amigo é como perder um pulmão.

Campos dos Goytacazes, 27 de janeiro de 2014 – 20:35 horas

Emar
Enviado por Emar em 27/01/2014
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