A Cura
Ela não sabe a idade que tinha quando viu sua mãe se jogar da janela do 10° andar. Lembra de seu irmão mais novo gritar “mamãe caiu!” E logo, uma onda de dor violenta lhe invadiu a alma. Era muito nova para entender o motivo. Até hoje não entende muito bem. Como ela pôde fazer isto com eles?
Seu pai, sempre calado, denotava um ar pensativo após sair do velório. O que teria levado ela, aparentemente bem, ter se jogado? Como pôde ter nos abandonado tão duramente?
Muitas perguntas para nenhuma resposta. O silêncio entre eles gritava uma culpa. O que eles não perceberam enquanto ela estava presente? Como a gente não pôde perceber a sua dor e seu sofrimento? A nossa aparente felicidade era falsa e ilusória?
Então cada um seguiu sua vida. Ela se formou em Administração e seu irmão em Engenharia. Ela se casou e seu irmão foi trabalhar em outro Estado devido uma oportunidade no trabalho. Seu pai decidiu continuar morando na mesma casa, dizia que queria continuar sentindo o cheiro dela pela casa. Isso o mantinha vivo.
Tornou-se uma pessoa duramente exigente, consigo e com os outros. Era demasiada perfeccionista e metódica. Tudo tinha que ser do jeito pensado, do contrário, ela sentia-se perdida, aflita e angustiada.
Em suas crises de pânico, tomava sempre 25 mg de cloridrato de amitripilina e 2 mg de clonazepam. Pronto. Estava anestesiada de sua morte prévia.
Não sabia até quando poderia viver assim, sendo ela perfeccionista. Queria se curar, mas isso parecia algo impossível. Começou a fazer terapia por conselho do psiquiatra, já que o marido a insistia e ela não dava-lhe ouvidos. Para ela, os homens são fracos, pois se fossem fortes e presentes como ela imaginava que seu pai fosse, talvez sua mãe não tivesse suicidado-se.
A terapia a fazia sentir uma dor que ela ignorava a todo custo. Desistiu. É melhor ficar anestesiando a ferida do que remexer ela e quem sabe talvez, terminar minha vida do mesmo jeito que mamãe. E isso ela não pode. Era cristã e isso não tem perdão.
Continuou a se drogar com os seus psicofármacos até que um dia trabalhando teve uma crise que as drogas ingeridas não conseguiram fazer efeito. Todo mundo a viu caída no chão, chorando, se contorcendo de uma dor que ela mesma não queria se livrar, por medo. Pensamentos depressivos, como espíritos obsessivos pediam que ela se matasse. Seria a saída para aquele tormento e a cura para a sua dor eterna. Estava enlouquecendo de dor. Taquicardia e falta de ar. Era a morte, de fato querendo a levar. Ligaram para uma ambulância e para Carlos, seu marido.
Foi sedada ao chegar no hospital. Carlos estava aflito. Pode entrar no quarto em que ela estava após algumas horas. Decidiu não perguntar nada. Era melhor deixá-la à vontade.
Ele abriu a porta, com medo de falar algo que a irritasse. Olhou para ela. Estava sorrindo. Abriu as mãos pedindo o toque da mão dele. Ele a tocou, aflito e uma lágrima escorreu. “Tive medo de te perder.” Disse ele. Ela chorou também, acariciou a mão dele e reconheceu. Conseguia se lembrar das perguntas do terapeuta acerca do suicídio de sua mãe e a dor reapareceu, só que agora ela reviveu a dor e a reconheceu. “É de culpa que eu morro, amor. Preciso me livrar disso senão terei o mesmo fim que mamãe. Agora entendo ela, ainda não sei o motivo que a fez se matar, mas ao menos faço idéia de como isso pode acontecer.”
Foi para casa e decidiu visitar seu pai. Queria saber de sua mãe, histórias talvez que se ligassem e que possivelmente pudessem trazer alguma luz nessa escuridão que é a dúvida. José, cabisbaixo como sempre, disse que ela sempre se queixava do abandono precoce do pai e que recentemente foi em busca de alguma pista dele, para resolver essa dor que a atormentava. Leandro, seu irmão acaba de bater na porta ao chegar de viagem para saber como a irmã estava, pois ficou muito preocupado quando soube que ela havia tido uma crise aguda de pânico. Abraçaram-se e ela pediu que se sentassem, pois iria fazer uma café .
O cheiro de café lembrava quando Laura estava acordada, o cheiro era tão bom e forte que entrava nos quartos deles, avisando que o dia havia começado.
Terminou e colocou as quatro xícaras na bandeja para servi-los. Sentou-se depois que serviu e pediu que o pai continuasse.
“Ela conseguiu encontrar o endereço dele e foi vê-lo, muito contente. Chegando lá, ele não hesitou em tratá-la com indiferença e não hesitou em feri-la com essas duras palavras: você foi um erro Lourdes. Eu nunca quis te ter. Por isso te abandonei. Olha só para mim. Sou rico e você é de origem pobre. Meu pai me mataria se soubesse que me envolvi com gente assim. Seria desonrado da família.” Disse ele, sem medo de matá-la por dentro.
E ela chegou aqui em casa, aos prantos. Mas foi discreta ao entrar, para que vocês não percebessem e ficassem preocupados ou fazendo perguntas que talvez fossem fazê-la desmoronar outra vez. E desde então, ela ficava cada dia mais calada, com um semblante pesado de dor e rejeição. Eu tentava conversar, ajudá-la de alguma forma, mas ela se fechava cada vez mais. Chegou a dizer que não era nada, que não era ninguém nesta vida. Eu fiz o que pude, tentava me aproximar sempre que ela parecia distante, mas ela rejeitava qualquer presença. Eu tentei minha filha...” E seu pai começou a chorar. Eles se abraçaram, chorando juntos. “Não foi nossa culpa pai, não foi nossa culpa, dizia Larícia. Leandro os abraçava tão forte como se quisesse gritar de dor e de culpa também. Estavam se curando. Estavam se perdoando.
E hoje, Larícia, Leandro e José dormem sem este peso que mata a alma silenciosamente.
E a pedido de Carlos, Larícia voltou a fazer terapia e já diminuiu a dosagem dos remédios. É a cura chegando.