Pólvora
No lago havia um trapiche e na ponta do trapiche havia uma menina.
Ela usava pijama, pois não tinha roupa de banho para nadar e já não era mais criança para ficar seminua na frente de homens, mesmo que fossem de sua família.
Principalmente sendo de sua família.
Seus pés descalços nas tábuas ainda não haviam perdido a brancura quase translúcida do longo – longo, longo demais – inverno, e ela os sentia queimar pelo sol forte a oeste. As pernas já se mostravam douradas em contraste com uma penugem fina e loura que reluzia livre. Havia alguns arranhões e manchas escuras em vários pontos da pele. A garota sustentava a longa vara de pesca com um braço e com a outra mão bebia cerveja de uma lata.
Olhava alternadamente para a boia colorida flutuando na superfície suave do lago e para a paisagem ao redor com que tanto sonhara nas muitas (incontáveis!) horas de trabalho. Observava por baixo de cílios claros e por sob bochechas queimadas com seus olhos absurdamente amarelos apertados na luz.
Era o penúltimo dia do ano.
Um quero-quero reclamou e deu um rasante a alguns metros dela, como se a desafiasse. Chega de desafios, ela pensou, ao menos por um dia, chega de desafios. Fora um ano difícil, e por isso notável; a menina crescera e talvez já fosse uma mulher, apesar de parecer quatro anos mais nova, na melhor das hipóteses. A verdade é que quem a via com olhar leviano dava-lhe dezesseis anos e uma pureza absoluta de emoções, uma virgenzinha. Apenas o observador atento – e ele próprio já bastante vivido – notava numa curva do sorriso, num trejeito, num brilho pervertido que lhe escapasse dos olhos acidentalmente (ou talvez seu rosto apagando por um momento a uma lembrança) o quanto a garota do trapiche já sofrera e fizera sofrer, o quanto já pecara e perdoara, como odiara e amara, quantas meninas e meninos já enganara e por quantos já fora enganada; como já vivera.
Ninguém é perfeito, afinal, e em algum momento da vida as pessoas precisam tentar e errar, mesmo que se machuquem ou a outros. E ela estava feliz enfim. Trabalhando duro para aproveitar as horas livres com todas as forças. Já fora diagnosticada com tantos transtornos e síndromes e doenças psiquiátricas em geral que supostamente comprometeriam sua alegria pelo resto da vida, tudo graças a seus traumas, que agora estavam... Quase superados. A menina ainda tinha seus receios. Era nova e tudo era muito recente. Mas quanto a beber demais e fumar demais e fazer experimentos desesperados, e quanto às crises de veterana de guerras que jamais haviam acontecido senão na sua própria cabeça; e as paixões destrutivas e o vazio que tomava conta do espaço inteiro – eram touros dominados.
(Ela sentiu um beliscão na vara de pesca. Ergueu a ponta e viu que a isca havia sido roubada. Tirou um novo grão de ração do bolso esquerdo e prendeu bem firme, e devolveu a boia à água com bastante cuidado para não assustar os peixes.)
O que a assustava agora era toda a ideia envolvendo o que se espera que as pessoas façam numa determinada idade, que estava se aproximando da garota. Casamento, e tudo o mais. Seus homens – ou melhor, seus meninos; ela tinha horror a homens – e suas mulheres. Era tudo tão confuso para ela a partir do momento em que deixava de simplesmente s-e-r para se tornar um comprometimento que, para evitar o aborrecimento todo, a menina tornara-se muito só.
Ela se acostumara com a solidão, como ali na ponta do trapiche com sua cerveja e sua tagarelice mental, e aprendera a amá-la. Agora tinha medo do momento em que teria que abrir mão de andar sozinha, e lá dentro da mulher que era ou seria ela sabia que esse momento inevitavelmente chegaria.
Mas não sabia se saberia o que fazer, o que lhe dava um bom nó na cabeça.
Assim, ela era solitária, bem ao contrário da ideia geral sobre garotas que gostam de gente dos dois sexos (ou dizem gostar). Isso também a confundia, mas ela não pensou nisso agora; tinha uma opinião bem formada sobre ser digna e estar somente com quem lhe parecesse igualmente digno, não importava o sexo, e isso lhe bastava.
E se ela se casasse com um homem, ou melhor, um menino, e a falta de uma mulher a fizesse enlouquecer, ou vice-versa? E se ela se apaixonasse por um menino que por óbvio se tornaria um homem um dia, será que ela o desprezaria, e também se desprezaria? Será mesmo que ainda conseguiria amar um ser masculino, tendo não só seus queridos traumas e complexos de que ainda não sentia muita vontade de se desapegar por completo, mas principalmente tendo se entregado com tanto abandono ao tipo de encanto gentil e sagaz que uma pessoa pode esperar encontrar em uma mulher singular, mas raramente num menino e muito menos num homem?
Pois os homens tornam-se duros e insuportáveis, a menina pensou, e quando não o fazem, tornam-se moles e também insuportáveis. Que nojo tinha desde criancinha de homens incapazes, resmungões, como uns bebês enormes e peludos. Tentava lutar contra essas ideias, mas vieram dos tais acontecimentos traumáticos e portanto era uma luta perdida.
Mas ela amava meninos. Meninos adoráveis de coração grande e quente e sorriso largo e riso feliz. Pensou em um menino em especial e sorriu. Então parou de sorrir ao perceber como parecia idiota e pré-adolescente para rir com ironia de si mesma, numa atitude de garoto.
Seria ela mesma forte como um homem deveria ser, decidiu, mas adorável como as mulheres que amava. Pois nunca deixaria de ser mulher. Corpo de mulher, cabeça de mulher, coração, principalmente. Não entendia por que mulheres que amam outras deixam de sê-lo, se tanto o amam, mas havia aprendido a não pensar muito sobre as ações ou decisões dos outros, e nesse sentido era resolvida e feliz.
Ergueu a vara até vislumbrar o anzol com a isca ainda espetada.
- Foda-se então – ela sussurrou. Era mesmo perto das três da tarde, muito quente para pegar algum peixe. Jogou a isca intacta e empapada fora junto com o punhado de ração restante, prendeu o anzol à linha dando uma volta em torno do caniço e pousou-o nas tábuas. Tomou um longo gole da cerveja até esvaziar a lata e tirou do bolso direito uma caixinha de traques – Traque do Bão – e uma de fósforos; acendeu um fósforo, encostou a chama na cabeça do traque, e botou-o dentro da lata, que atirou no lago. Aguardou com o sorriso pega-trouxa de raposa que lhe era característico.
Após alguns segundos, a lata explodiu com um tiro que ecoou seu triunfo pela paisagem rural, e a menina riu gorgolejante. Pulou do trapiche em meio à fumaça perfumada de pólvora, uivando como Peter Pan até seus pés atingirem o lamaçal preto do fundo do lago.
Lembra-te de que morrerás, lera uma vez no teto de uma velha igreja; ela não esqueceria.